A dias de fazer 79 anos, a “profeta da distopia”, como foi apelidada pela revista New Yorker, aterrou no Fórum do Futuro, no Porto, para falar sobre o papel central da mitologia na sua obra e vida. À espera da visionária por trás de The Handmaid’s Tale (o livro convertido em série com o mesmo título, no Rivoli), estava uma sala em que os lugares vagos se contavam pelos dedos e vários idiomas se confundiam. Como seria de esperar, os jovens estavam em maioria – desde que o mundo distópico imaginado por Margaret Atwood em 1985 foi transposto para série em 2017 que o nome da autora se tornou mais do que familiar para as novas gerações. Principalmente devido aos paralelismos que a opinião pública tem estabelecido entre a sociedade fundamentalista e misógina criada da escritora canadiana e a América pós-Trump.

A viralidade da série foi, muito provavelmente, a razão pela qual o moderador da conversa, Gareth Evans, engraçou ao introduzir a protagonista: “Ela publicou mais de 60 livros. Repito, 60 livros. Não publicou um só.”

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Pouco depois, Atwood entra em cena e traz consigo um power point com diapositivos coloridos preenchidos de fotografias e breves descrições. Começa por revelar: “Numa outra vida, fui ilustradora. Aliás, aos 12 anos o que eu queria era ser pintora”. E mostra, entre outras, uma ilustração em que se auto-retrata como uma fusão de peixe, pássaro e mulher – através da qual explica que uma das coisas que mais a fascinava na mitologia grega eram as criaturas híbridas –, e outra em que vemos uma deusa a chocar o ovo do alfabeto – “Foi assim que nasceu o alfabeto, tenho a certeza que vocês sabem disso”, diz, arrancando risos.

Depois, tal como se estivéssemos lado a lado, sentados num sofá a folhear álbuns de família, Atwood faz uma revista à sua vida. E a história começa com uma curiosidade. No universo criado pela autora na série que já ganhou oito Emmys, a mulher é a doméstica, a procriadora e a responsável pela manutenção de costumes opressivos. Já na vida real, a escritora cresceu exposta ao exemplo de uma mãe que era “maria-rapaz, adorava andar a cavalo e não gostava de trabalho doméstico, roupas, chapéus, luvas ou festas de chá”.

“Portanto, casou com a pessoa certa”, acrescenta, referindo-se ao pai, um aventureiro entomologista florestal que dedicou a sua vida a estudar os insetos nas florestas do norte do Quebec, no Canadá. Foi lá que Atwood cresceu, sem eletricidade ou água. Sempre com histórias engraçadas na ponta da língua, recorda a caça, a apanha de frutos silvestres, a recolha da madeira para o forno, as lagartas que tinha como animais de estimação e o irmão que levava cobras para dentro de casa. “A maioria das crianças tinha medo de ursos, eu tinha medo de sanitas com descarga. Era assustador, as coisas desapareciam”, conta, entre risos.

[o trailer da primeira temporada de “The Handmaid’s Tale”:]

Influenciada pelo irmão mais velho, que lhe contava histórias, escrevia livros e desenhava heróis mitológicos, a autora apanhou o gosto pela arte. Nos anos 50, adolescente, devorava livros de ficção científica. Desde aí, soube que queria escrever um, mas “um com uma narradora feminina, porque todos os que lia eram narrados por homens” – há sete anos fê-lo, finalmente, com In Other Worlds. Mesmo antes de chegar à faculdade, revela, já tinha lido As Mil e Uma Noites, a Ilíada e a Odisseia – este último que a inspirou a escrever o seu livro mais mitológico, A Odisseia de Penélope, que descreve a odisseia do ponto de vista da esposa de Ulisses.

Hoje, não tem dúvidas de que “a mitologia faz parte da caixa de ferramentas fundamentais de um escritor” – “Se estás a tentar praticar qualquer arte ou engenho, precisas de saber quais são os teus ‘materiais de trabalho’. Tens de conhecer o que os escritores da tua geração estão a fazer, mas também tens de conhecer estas histórias, que são ‘à prova do tempo’.”

“No Canadá, ninguém queria empurrar as mulheres para dentro de casa”

“O que é que se passa no Canadá para de lá saírem tantos artistas fantásticos, como Neil Young, Leonard Cohen ou Joni Mitchell? É o aborrecimento, é o ar, é a educação?” – foi esta a primeira pergunta atirada por um membro do público, à qual Atwood retorquiu, em tom de brincadeira, “Nós devíamos tentar dominar o mundo”. Depois, mais a sério, refletiu:

“Acho que a razão por trás disso é que ninguém nos disse que não podíamos fazer o que quiséssemos. Nunca me disseram que eu não podia ser escritora, mesmo sendo mulher nos anos 50. Mas quando fui para os Estados Unidos, encontrei todas estas mulheres que achavam que o facto de eu querer ser escritora era algo muito audaz. Porque tinham a ideia de que elas não o conseguiriam fazer. No Canadá, ninguém nos queria empurrar para dentro de casa, como era habitual na América.”

Para satisfazer a curiosidade de uma outra espectadora, revelou que para lá da inspiração nas freiras medievais e no vestuário da era vitoriana, a autora foi buscar referências para as vestes das personagens de The Handmaid’s Tale às embalagens de um produto de limpeza dos anos 40 chamado “Old Dutch Cleanser”, em que figurava uma mulher num vestido azul com uma chapéu que lhe cobria a cara. “Na imagem, a mulher segurava um pau e era suposto parecer que ela estava a perseguir a sujidade. Mas, em criança, o que eu via era uma pessoa assustadora sem cara num vestido que lhe cobria tudo.” O vermelho foi buscá-lo à iconografia cristã, que “representa a Maria Madalena”.

[o anúncio ao produto de limpeza Old Dutch Cleanser, que inspirou Margaret Atwood para a criação do vestuário de “The Handmaid’s Tale”]

Sobre os seus hábitos de trabalho, Atwood admite ser uma escritora “muito visual”, que vai “desenhando pequenos rabiscos” ao longo do processo, e questiona a existência do chamado “bloqueio criativo” – “Quando me acontece é simplesmente um sinal de que a história não está a funcionar”, resume.

Quanto a novos autores do género em que se diz enquadrar, a ficção especulativa, a canadiana recomenda, entre outros, os livros The Power, de Naomi Alderman, The Water Cure, de Sophie Mackintosh e The Water Knife, de Paolo Bacigalupi. E acrescenta, por diversão, alguns dos seus filmes favoritos, divididos por géneros. “Blade Runner” é quem “vence” na área da ficção científica. Na específica categoria de filmes sobre vampiros, destaca “Let the Right One in”. E despede-se com uma sinopse humorística de um dos seus favoritos dentro dos filmes “espezinhados pelo Rotten Tomatoes” – “The Brain That Wouldn’t Die”. No final, Gareth Evans concluiu: “Depois desta conversa, vamos todos para casa, sob a chuva desta noite de novembro, a pensar no que é que andamos a fazer com as nossas vidas.”