As dúvidas não eram poucas. Tinham-nas a MTV e a própria banda. Quem já tinha ouvido Dave Grohl tocar bateria, que por essa altura era boa parte do mundo, perguntava-se como conseguiria ele refrear os ímpetos de força e tocar num concerto acústico. Quem ouvira In Utero, o terceiro e último disco dos Nirvana que tinha chegado às lojas há apenas três meses — ou os anteriores Bleach e, claro, Nevermind — perguntava-se como é que a barulhenta banda de Seattle transformaria a fúria elétrica em canções íntimas. Tratava-se, afinal, do grupo que gravara “Scentless Apprentice” uns meses antes.
Mais do que pessimismo, o que reinava mesmo era a incerteza. Nem a ida dos vizinhos e rivais na popularidade Pearl Jam ao mesmo formato um ano antes dava conforto para apostas. Kurt Cobain resistira à ideia por algum tempo. E no entanto tratava-se de uma das maiores bandas rock do planeta num dos formatos mais populares da indústria musical e televisiva — o MTV Unplugged. Como não avançar? Se já tinham conseguido convencer o mundo, até Portugal, de que as camisas de flanela poderiam substituir o cabelo à moicano como símbolo das ansiedades e frustrações da adolescência e juventude, como símbolo, também, da rebeldia e insatisfação com o mundo, o desafio era assim tão grande?
A pandilha de Seattle acabaria por avançar, mas à sua maneira. Nos ensaios o bom ambiente contrastava com a dificuldade da adaptação a um formato acústico (na verdade, acabaria por ser semi-acústico). Isto apesar dos Nirvana já andarem há algum tempo a preparar terreno — nos meses anteriores, enquanto andavam na estrada a promover ao vivo o novo disco In Utero (viria a ser o último), já reservavam parte dos concertos a um showcase acústico. Nessa altura, aliás, a “mente criativa” de Kurt Cobain dirigia-se para uma sonoridade “mais calma”, como chegou a confidenciar o A&R da editora dos Nirvana, Mark Kates.
No andar que ficava por baixo do local de ensaios, em Nova Iorque, uma loja com máquinas de pinball acalmava os nervos. Lá em cima, o clima era outro. Krist Novoselic, multifunções que tocaria baixo acústico (um baixo Guild entregue por Alex Coletti, produtor do MTV Unplugged, alegadamente recebido com grande entusiasmo pelo músico), guitarra acústica e acordeão, lembraria mais tarde que os ensaios “não correram nada bem” e que foi no seu quarto de hotel, em Nova Iorque, onde todos deram entrada com nomes falsos para evitar atenções mediáticas, que ultimou pormenores. Earnie Bailey, técnico da banda responsável pelas guitarras, reforçaria a ideia:
No final do segundo dia, pensava já que, considerando o estado em que as coisas estavam, seria um erro avançar com o concerto. Os ensaios foram tão ‘ao lado’ que não me lembro de tocarem um alinhamento inteiro”. A declaração é citada na extensa compilação de depoimentos do site de desporto e cultura pop The Ringer.
A ida a um concerto de Bob Dylan na véspera da atuação, para o ouvir cantar tudo menos “hits”, não chegou para afastar a tensão. A pressão a que nessa altura a banda estava sujeita era imensa — o estatuto de celebridades estava mais do que confirmado e Kurt Cobain, que no disco editado uns meses antes comparava-se à malograda atriz Frances Farmer, cuja turbulenta vida foi escrutinada e ficcinonada ao pormenor, era indiscutivelmente a estrela da companhia. Tendo morrido em 1970, Farmer legou o primeiro nome à filha que Cobain teve com Courtney Love.
O vocalista que com a morte se tornaria um mito era definitivamente o centro das atenções, não apenas pela música, poderosa como poucas e surgida como grito de reação a uns anos 1980 que enterraram o nervo, o barulho e a crueza das guitarras e bateria para elevar a disco, o rock hedonista dos Guns N’Roses e os omnipresentes (em alguns casos a roçar o mau gosto) solos de saxofone em canções pop. Cobain e Courtney eram o casal mais popular do rock and roll, mas também a parelha mais polémica da época. No ano anterior, um artigo da Vanity Fair em que Courtney era citada dizendo que se injetara com heroína quando estava grávida quase fez Cobain acabar com os Nirvana — como se veio a descobrir, com a publicação póstuma de uma carta que escreveu, revoltado, ao diretor-geral da sua editora, o famoso David Geffen. Por esta altura, só mesmo os mais desatentos desconheciam que o vocalista dos Nirvana lutava contra um vício de heroína que nesse verão lhe provocara uma overdose. Vício de que tentava não falar em entrevistas, por não querer que os fãs seguissem o exemplo.
A 18 de novembro de 1993, há precisamente 25 anos, a banda entrou nos estúdios da Sony Music em Nova Iorque para gravar o MTV Unplugged in New York. À época, quem privava com o cantor já esperava que ele morresse cedo. O próprio Dave Grohl assumiu-o. O que ninguém imaginava é que essa morte aconteceria apenas cinco meses depois, com um suicídio que seria já a sua segunda tentativa, depois de um mês antes ter misturado champagne com rohypnol (medicamento usado para combater ressacas de heroína) em Roma, acabando no hospital.
O design do estúdio estava preparado para o MTV Unplugged, ao gosto de Kurt Cobain, que exigiu “velas e muitas flores” em palco. Especificou: queria um tipo de lírios em especial, tão difícil de encontrar em grande escala no inverno que apenas as flores junto aos músicos, no centro do palco, eram verdadeiras — as que se encontravam num plano mais afastado, na retaguarda, eram falsas. Alex Coletti, produtor do concerto e gravação, perguntou-lhe se queria um cenário “tipo funeral”, ele disse-lhe que sim. A afirmação ainda hoje ressoa nas fãs, ainda que à data tivesse sido feita com muito mais descontração e inocência do que parece quando transcrita, como garante o recetor.
Se há uma conclusão forte deste dia de 18 de novembro de 1993 é que tentar adivinhar os gostos do público não é uma obrigatoriedade. Ninguém pode garantir que a subversão não pode ser a melhor fórmula para o sucesso (mesmo no mainstream) depois do que se passou em Nova Iorque, num momento felizmente imortalizado pelas câmaras e pelo sistema de gravação de som.
A banda não gostava dos MTV Unplugged que conhecia. Como Dave Grohl chegou a dizer, a maioria das bandas tratava-os como “concertos de rock ao vivo para tocar os seus êxitos, como se estivessem no Madison Square Garden com guitarras acústicas”. Não foi isso que os Nirvana fizeram. Num alinhamento de 14 canções, já devidamente “editado” com a eliminação de temas que o grupo de Seattle chegou a pensar tocar como “Serve the Servants”, “Heart-Shaped Box”, “Been a Son”, “Rape Me”, “Sliver” e “Versus Chorus Verse”, quase metade (seis das 14) foram versões de temas de outros músicos e bandas, quase todos pouco conhecidos. As restantes oito vieram dos três discos do grupo: quatro canções de Nevermind, três do recente In Utero e uma do primeiro disco, Bleach. Grandes êxitos? Quase nenhum.
Em palco estiveram, além de Cobain, Novoselic, Grohl e Pat Smear (este último membro recente, tipo que todos diziam ser de trato impecável, sempre de sorriso na cara, alguém que ajudou os Nirvana a manterem-se vivos e saudáveis mesmo num momento de especial turbulência), alguns convidados. Não foram convidados célebres, como os que a MTV esperava (longe dos microfones, quase todos diziam acreditar e esperar ver ali Eddie Vedder). Não eram muitos os que conheciam Lori Goldston, violoncelista que acompanhara a banda na última digressão, ou Cris e Curt Kirkwood, respetivamente baixista e guitarrista dos então pouco falados Meat Puppets, que em Nova Iorque acompanharam os Nirvana em “Plateau”, “Oh Me” e “Lake of Fire”.
A gravação começou com uma provocação de Kurt Cobain à plateia (em que estavam sentados alguns convidados especiais, jovens membros do clube de fãs da banda a quem Cobain foi autografar t-shirts e discos mal a atuação terminou) e às câmaras. Com o cabelo louro caído pelo pescoço, uma malha que era moda da época, t-shirt branca da banda Frightwig, calças de ganga e ténis Converse, apresentou “About a Girl”: “Esta é do nosso primeiro disco. A maior parte das pessoas não o tem”.
Alguns aplausos iam pontuando os intervalos entre canções, embora o silêncio predominasse na maior parte do tempo (por respeito à intimidade que se expunha em palco, não por desagrado, como Cobain chegou a pensar). “Come as You Are” foi despachada logo de seguida, como único êxito dos Nirvana ouvido nesse Unplugged. Nem “Smells Like Teen Spirit”, nem “Lithium”, nem “In Bloom” foram ali tocados nessa noite.
Se num concerto dos Nirvana, com a eletricidade e volume ruidoso, Kurt Cobain estava mais ofuscado, era quase um entre iguais (nunca o era, nunca o foi), neste concerto acústico era o epicentro de tudo, alguém de quem era difícil desviar o olhar. Não é notório que é ele a “alma” do concerto apenas na gravação vídeo, é-o também na gravação áudio que daria origem ao disco ao vivo editado postumamente. Isto apesar da extrema competência demonstrada por Grohl, Novoselic, Smear e Lori Goldston, cujo violoncelo foi mais importante para a beleza dos arranjos semi-acústicos (havia pickups que captavam o som e o eletrificavam ligeiramente) do que habitualmente se considera.
“Jesus Doesn’t Want Me For a Sunbeam” (na versão original, é “Jesus Wants Me For a Sunbeam”), o terceiro tema, é um dos pontos altos do disco. Originalmente uma canção cristã, foi adaptada pelos escoceses The Vaselines e foi essa a versão que ficou no ouvido de Kurt Cobain e dos Nirvana. “Tocamo-la à maneira dos The Vaselines”, claro.
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“The Man Who Sold the World”. Como ignorar aquela certeza auto-depreciativa “garanto-vos que vou estragar isto” com que Cobain a introduz, a voz àspera a cantar “we never lost control”, a cantar sobre o tipo que para Bowie vendeu o mundo a que ele parecia pertencer cada vez menos? O sorriso forçado depois da primeira canção “About a Girl”, as piadas e o bom humor revelados a espaços não escondiam que na maior parte do tempo Cobain estava meio sorumbático, olhos semi-cerrados quando não fechados, perfecionista como era, vulnerável como estava, expondo letras que o identificavam e a voz que às vezes quase lhe fugia, como na seguinte “Pennyroyal Tea”, que interpretou sozinho à guitarra (“aqui vai mais uma que posso estragar”) e em que quase parou a meio?
Os cigarros ainda eram admitidos em estúdio e nas filmagens (outros tempos, é verdade). Kurt Cobain acalmava os nervos com eles, entre as canções em que parecia sempre prestes a quebrar, como se fosse de vidro. Como lembrou o seu biógrafo, era um homem que estava “verdadeiramente a despedaçar-se, fisicamente e mentalmente. Não andava a dormir. E ainda assim, em palco, assim que a fita começa a correr, é absolutamente hipnotizante”.
Lá mais para a frente, já depois de uma versão memorável de “Polly”, eis que chega “Something in the Way” e um Cobain novamente (aparentemente) descontraído. Segue-se uma versão de “Plateau” que reforçou o tom de baladas misteriosas, de tempos remotos, assombradas. Aquele “who needs action when you got words” com a voz a sair das entranhas…
“Where did you sleep last night”. Também se ouviu, claro, “Dumb”, “On a Plain”, “Oh Me”, “Lake of Fire” e “All Apologies”. Mas se esta atuação há precisamente 25 anos tivesse de ser resumida a uma só canção, se por algum infortúnio só se pudesse ver e ouvir os Nirvana gravaram uma destas 14 versões acústicas, a escolha tinha de ser “Where Did You Sleep Last Night”. Cobain a dizer de Lead Belly “é o meu intérprete preferido”, olhando para o resto da banda atrás de si e acrescentando com um tom de gozo de quem não esperava um não como resposta: “O nosso intérprete preferido, não é?”.
O início calmo, o crescendo de volume até se tornar o máximo a que uma banda rock pode chegar com instrumentos acústicos, a voz de Cobain a dizer que vai “onde o vento soprar”, a gritar “My girl”, a pronunciar “ohhhhh ohhhhh”, o olhar assustado de quem parece que acabou de ver o futuro, o som do respirar ofegante que parece quase um suspiro e o “night through” que rematou tudo? O som dos Nirvana a verterem as frustrações, raivas e medos, quase sem filtros, sem máscaras, é este mesmo.
Foi há 25 anos, num estúdio em Nova Iorque. Quando “Where Did You Sleep Last Night” acabou, a banda teve de responder se queria cantar mais temas ou se ficava por ali. O alinhamento não tinha sido excecionalmente longo, mas todos concordaram que era difícil superar aquele final. Amy Finnerty, antiga executiva da MTV, descreveu-o mais tarde: “O tempo simplesmente parou”. Decidida a ausência de encore, Kurt Cobain foi falar com fãs, encontrou um tipo que não era fumador mas lhe pediu um cigarro. Kurt deu-lho, ele não o fumou mas guardou-o religiosamente. Cinco meses depois, os liceus, as universidades, os bares, clubes de rock and roll e as ruas entravam em luto.