Ouve-se dizer que as artes de palco apresentam obras que ninguém entende ou que pouca empatia suscitam junto do público – crítica quase sempre acompanhada desta outra: que os artistas são um custo pesado para o Estado. Uma conversa recente de Clara Andermatt com o Observador não abordou diretamente aquelas objeções, mas andou lá perto, com a bailarina e coreógrafa a sugerir que também ela tem dúvidas sobre as suas obras, porque “a criação artística é um processo em aberto e um caminho de aprendizagem constante”.

Nome histórico da dança contemporânea, bailarina quase desde que nasceu e coreógrafa estabelecida em 1991, Clara Andermatt não sabe de cor quantos espetáculos criou até hoje – 50 ou 60, provavelmente – e admite que muitas vezes tem dúvidas sobre os trabalhos que apresenta. “Quem vive a tentar compreender o que está aqui a fazer e qual a relação de si próprio com os outros e com o mundo, tem sempre muitas interrogações”, reflete.

É também esse o espírito do novo “Parece que o Mundo”, no Teatro Municipal São Luiz, em Lisboa, nesta quinta e sexta, às 21h00, e no domingo, às 17h00, espetáculo em que João Lucas entra como músico, o que é habitual, mas pela primeira vez também como cocriador.

[vídeo de apresentação de “Parece Que o Mundo”]

“Acho que é uma reflexão sobre a maneira como nos posicionamos face à vastidão do mundo, incluindo os aspetos mais triviais e mundanos. É sobre a nossa capacidade de observação e de análise”, resume Clara Andermatt. “Partimos de um romance de Italo Calvino, ‘Palomar’, do início dos anos 80, em que uma personagem procura apaziguar a sua ansiedade de compreender o mundo.”

Evidentemente, é também esse o desejo da artista, segundo a qual as suas criações temáticas, como é o caso – por oposição a trabalhos abstratos, que também tem assinado –, resultam sempre de uma observação atenta de si mesma e do mundo que a rodeia.

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“Por isso é que o espetáculo se chama ‘Parece Que o Mundo’, porque aquilo que vemos é sempre o que parece ser. Nunca sabemos. Uma coisa para mim é isto e para outra pessoa é aquilo. O título remete para a subjetividade e para a interpretação pessoal, que muitas vezes é aquilo a que podemos agarrar-nos para entender o mundo”, acrescenta.

Os sete intérpretes da peça – Ana Moreno, Felix Lozano, Gil Dionísio, Joana Guerra, João Madeira, Jolanda Löellmann e Liliana Garcia – surgem como personagens de múltiplas identidades e nem sempre humanas, com movimentos animalescos e sons guturais, e nenhum texto, com exceção de uma interpretação caricatural do clássico de Elvis Presley “Can’t Help Falling In Love”. Assim se viu na semana passada, durante um ensaio aberto à imprensa, no estúdio da Companhia Clara Andermatt, no Bairro Alto, em Lisboa.

As personagens são ondas do mar, tartarugas ou corpos celestes e as ações têm efeito direto no som de três instrumentos musicais que se encontram em cena, dois violoncelos e um violino, que por sua vez são também são personagens. De resto, a música tem sido um elemento fundamental para Clara Andermatt. Nos anos 90, trabalhou Luís Cília e João Lucas, mais tarde com Victor Rua e Jonas Runa, mais recentemente com Luís Pedro Madeira, na vertente da música tradicional portuguesa.

“Nasci e praticamente fui logo dançar”

Filha de Luna Andermatt (1926-2013), bailarina, professora e ex-diretora da Companhia Nacional de Bailado, Clara Andermatt nasceu em Lisboa, em 1963, e aos três anos já tinha aulas de aulas de dança com a mãe, nas classes que esta lecionava no Clube Estefânia. O apelido é de origem alemã, o avô de Clara Andermatt nasceu em Portugal, filho de alemães, mas a história desse ramo da família perde-se no tempo.

“Nasci e praticamente fui logo dançar”, recorda a artista na voz forte e bem colocada que é seu timbre. “A minha mãe dava cursos de dança a imensas alunas, em diferentes níveis. Eu comecei na classe das bebés, eram aulas de expressão corporal, de descoberta da relação com a música, de contacto com um universo de sensibilidade. A minha mãe sempre me proporcionou essa escuta criativa.”

É a mais nova de três irmãos: Maria de Assis Swinnertton, que se tornou programadora cultural da Fundação Gulbenkian, e Francisco de Assis, que se tornou economista, “uma família muito unida.” Em casa havia um piano, o pai tinha uma paixão por orquestras, os irmãos estudavam no Conservatório e tinham amigos músicos. Cresceu neste ambiente.

“Não era necessariamente a bem-comportada da família, os pais já estavam mais permissivos, os irmãos ajudavam e abafavam algumas travessuras. Mas nunca tive uma fase de rebeldia contra a dança, como poderia acontecer a uma jovem que sempre esteve naquele mundo. Simplesmente, a minha mãe perguntava-me se eu queria, se não queria, era uma escolha minha. Se calhar, foi ao contrário: ser bailarina é que foi a minha forma de rebeldia. A minha mãe também foi rebelde ao insistir em dançar numa época em que as bailarinas eram malvistas. Quando tinha uns 20 anos, um amigo fez-me uma daquelas perguntas existenciais: ‘Porque é que danças?’ Respondi: ‘Sei lá. Eu já vim ao mundo a dançar.’. Nunca foi uma questão. Dançar era aquilo que eu era, o que eu gostava de fazer e de estudar.”

No fim dos anos 80, Clara Andermatt integraria um dos movimentos artísticos mais importantes do século XX em Portugal, o da Nova Dança Portuguesa (NDP), assim definida à época pelo crítico António Pinto Ribeiro. Tinha estudado no London Studio Centre e na Royal Academy of Dance entre 1980 e 1984, com direito a bolsa de estudo por ser boa aluna. Depois tinha trabalhado na Companhia de Dança de Lisboa, de Rui Horta (1984-88), e na Companhia Metros, de Ramón Oller, em Barcelona (1989-91). “Nunca pensei ser coreógrafa, eu queria era dançar”, recorda. E em 1989 tinha recebido o primeiro prémio do III Certamen Coreográfico de Madrid, com a obra “En-Fim”, inicialmente pensada como dueto com Jordi Cortés. “A vida foi-me levando de uma maneira não muito consciente e fui tendo propostas como coreógrafa.”

Nova Dança Portuguesa “foi uma luta”

Em 1991, quando decidiu regressar a Portugal, assinou duas obras de repercussão: “Louca-Louca Sensação de Viver” e “Mel”, então descritas pelo crítico André Lepecki como portadoras de um imaginário ibérico e surrealista, marcadas por gestos minúsculos dos bailarinos, repetições obsessivas, ícones religiosos e forte carga sexual. De repente, Clara Andermatt estava no meio dessa viragem a que se chamou NDP, movimento caracterizado, segundo a crítica e investigadora Maria José Fazenda, não por um estilo mas por uma ausência de estilo: rejeição da ideia de “ballet”, introdução de elementos de teatralidade, novas técnicas de movimento, intérpretes de fora da dança, apresentações em espaços não convencionais. Francisco Camacho, João Fiadeiro, Vera Mantero, Paulo Ribeiro, Margarida Bettencourt, Paula Massano e Clara Andermatt são apontados como alguns dos protagonistas.

“Antes de nós, já havia coisas a acontecer antes, mas muito esporádicas. A diferença foi que a nossa geração saiu de Portugal, cada um tinha estudado em diferentes países. Quando regressámos, tínhamos vontade de desbravar caminhos”, relembra. “Foi uma luta muito grande para fazermos o que queríamos. Fomos produtores, professores, bailarinos, criadores, pusemos a mão na massa numa tentativa de criar condições. Alguns rejeitaram de forma assertiva o Ballet Gulbenkian e a Companhia Nacional, mas não foi o meu caso. Integrei, não virei costas ao bailado clássico, ainda por cima tinha uma formação muito sólida nessa área. Se há coisa que caracteriza a NDP é que éramos todos amigos, entrosados no trabalho uns dos outros.”

“Parece Que o Mundo” tem sete intérpretes em cena com personagens humanas e animais

E onde está agora NDP: foi um momento histórico sem descendência? “Houve um certo deserto na geração seguinte, poucas pessoas se revelaram, talvez porque tínhamos feito tanto”, responde Clara Andermatt. “Hoje a dança portuguesa é outra coisa, muito mais vasta e contaminada, com imensas linguagens e referências, mas também alguma influência dos caminhos que desbravámos na altura.”

De certa forma, aquele movimento prossegue apenas no trabalho dos criadores de então. A coreógrafa reconhece que alguns dos seus espetáculos, incluindo o novo “Parece Que o Mundo”, são aperfeiçoamentos ou depurações da linguagem original. “Há uma linha constante no meu trabalho desde o início, uma vontade de conhecer mais e mais o lado primário dos seres humanos, mas também tenho feito criações mais experimentais, e aí caminho por zonas novas.”

Os cortes no apoio público à criação artística desde há cerca de uma década, e os problemas de orçamento e de logística surgidos este ano com o Novo Modelo de Apoio às Artes, são vistos por Clara Andermatt com preocupação. A companhia vai receber um montante de cerca de 169 mil euros, referente a 2018 e 2019, de acordo com os resultados divulgados em março pela da Direção-Geral das Artes. Mas a falta de recursos é crónica, diz. “Quem está na criação artística há várias décadas sente um deslaçar e uma deterioração das equipas e às vezes até do sentido criativo. Eu tinha uma vontade de trabalhar com grandes elencos, depois da fase áurea dos anos 90, e de repente vi tudo muito fragilizado. Sinto na pele os problemas da falta de apoio público e claro que estou solidária com estruturas que sofreram cortes que eu não sofri desta vez de forma tão evidente.”