“Os amigos querem-se juntos e devem visitar-se mutuamente”. Foi assim que o presidente angolano explicou a importância da visita de Estado que está por estes dias a fazer a Portugal. Numa intervenção à comunicação social no Palácio de Belém, ao lado de Marcelo Rebelo de Sousa, João Lourenço afirmou que “alguma coisa terá falhado nesta busca de alimentar a amizade de dois países”, já que há nove anos que um chefe de Estado de Angola não visitava Portugal. Referia-se, claro, ao seu antecessor, José Eduardo dos Santos, mas nem por uma vez o nomeou. Aliás, João Lourenço recusou-se sempre a admitir que tem ali um “novo irritante” que pode resultar numa crise política, mas não foi brando quando falou no combate à corrupção que quer que seja a grande bandeira do seu mandato.

Depois de Marcelo Rebelo de Sousa destacar a importância do “novo ciclo” das relações entre os dois países, por Angola ter agora ao leme “um novo representante”, com um programa e propostas políticas que Marcelo disse conhecer bem, João Lourenço destacou que tinha aterrado em Lisboa para falar de “presente e de futuro”. O passado, e os “irritantes” que acarreta, ficou lá atrás. “Não ficam rancores”, disse, admitindo que nunca gostou da expressão “irritante”, usada em Portugal para classificar o conflito entre a justiça portuguesa e angolana a propósito do caso judicial que envolve o ex-vice-presidente angolano Manuel Vicente.

“O que é passado é passado, estou aqui a pensar no presente e no futuro das nossas relações”, disse o chefe de Estado angolano no Palácio de Belém, depois de terminada a primeira parte do programa oficial com Marcelo Rebelo de Sousa. “O que se passou foi que, da parte de Portugal, havia o incumprimento de um acordo que existia, só nos limitámos a recordar a um país amigo que tinha de o cumprir”, disse, sublinhando que a mesma entidade que hesitou cumprir (a Justiça portuguesa) foi a mesma que depois acabou por fazê-lo. Por isso, tudo ultrapassado.

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Quanto a Portugal, tudo bem: a amizade entre os dois povos é “imutável” e os “povos não mudam”, o que muda, disse, é “a classe política”. Cabe a essa mesma classe política a “obrigação de saber interpretar corretamente a vontade dos povos, e a vontade do povo angolano e português sempre foi a do estreitamento da amizade e cooperação”.

Era, portanto, para o seu antecessor que estavam reservadas as palavras mais duras (de forma velada). Ao mesmo tempo que se recusou a responder a uma pergunta sobre se estava em vias de eclodir uma crise política em Angola na sequência do contra-ataque de José Eduardo dos Santos e da filha, e empresária, Isabel dos Santos, dizendo tratar-se de “questões internas”, João Lourenço foi demolidor na resposta final a uma pergunta sobre se não estaria a brincar com o fogo ao prometer combater a corrupção em Angola: aí disse que não ia parar de “brincar com o fogo”, porque não tinha medo de se queimar. O objetivo, explicou, é matar o “ninho do marimbondo” (uma espécie de ninho de vespas) — se para isso tiver de se levar umas picadas, que seja. Isso não o matará.

“Quando nos propusemos a combater a corrupção em Angola sabíamos que era preciso coragem, porque estávamos a mexer com o ninho do marimbondo, e a picada da vespa é dolorosa. Tínhamos noção de que podíamos ser picados, e já estamos a sentir as picadas, mas isso não nos mata. É preciso destruir o ninho”, disse João Lourenço.

Antes da metáfora das vespas, o presidente angolano  até já tinha usado uma outra, a do fogo. “Temos noção das consequências desta brincadeira, sabemos que o fogo queima. Mas o importante é saber mantê-lo sob controlo, não deixar que se alastre e que se torne num grande incêndio”. No final, a mensagem era a mesma: o combate à corrupção não vai parar, apesar das queimaduras ou das picadelas que for tendo pelo caminho. Mais: Angola tem 28 milhões de habitantes, e não tem 28 milhões de corruptos. Logo: “Somos milhões e contra milhões ninguém combate, que é o mesmo que dizer ‘que ninguém pense que consegue enfrentar os milhões que somos'”.

A chuva copiosa que só parou à chegada de João Lourenço: “Bem-vindo”

“Em Angola dizemos sempre que quando há chuva é bom sinal”, comentava-se entre os jornalistas, angolanos e portugueses, que, esta manhã, esperavam a chegada do Presidente da República angolano debaixo de uma chuva copiosa. Em Portugal o ditado é semelhante: casamento molhado, casamento abençoado. A visita de três dias de João Lourenço a Portugal não é exatamente um casamento, mas não estará longe disso, amenizadas que estão as relações políticas entre os dois países “irmãos” depois de um “irritante” judicial chamado Manuel Vicente.

Recentemente, numa entrevista à Rádio Nacional de Angola, Marcelo Rebelo de Sousa até mostrou muita vontade de visitar Angola — mas apenas iria, claro, se fosse convidado. Porque, e explicou, “a casamentos e batizados não se vai se não for convidado, e ir a Angola para mim era ao mesmo tempo um grande casamento, um grande batizado, era uma grande festa”. O convite ficou selado logo neste primeiro dia de visita, com João Lourenço a anunciar que Marcelo Rebelo de Sousa vai visitar Angola no próximo ano, numa “data a acertar pelas diplomacias”, anunciou o chefe de Estado angolano.

“Vamos assinar [amanhã, no Porto] 12 instrumentos de cooperação, e são apenas 12 porque não pretendemos esgotá-los enquanto o Presidente Marcelo não visitar Luanda”, disse João Lourenço durante a sua intervenção no Palácio de Belém, no início da sua visita de Estado de três dias a Portugal.

Foi, no entanto, debaixo de uma chuva “abençoada” que Marcelo Rebelo de Sousa esperou pela chegada do seu convidado de honra. Eram 10h53 em ponto quando o Presidente da República chegou à Praça do Império e se dispôs junto às tropas, em parada, para ouvir o hino nacional. Por essa altura, a chuva não dava tréguas, dificultando a vida ao Presidente português. Passaram 15 minutos de chuva intensa e o presidente angolano lá chegou. E chegou no mesmo instante em que a chuva parou.

Já sem o “irritante” temporal, João Lourenço, acompanhado da primeira-dama, Ana Dias Lourenço, foi recebido com o tradicional aperto de mão do chefe de Estado português. Fotografia da praxe, os hinos dos dois países, 21 salvas de canhão, revista às tropas, e uma coroa de flores no túmulo de Luís Vaz de Camões — tudo conforme manda o protocolo da visita de Estado.

A acompanhar o chefe de Estado angolano estavam vários ministros de Angola, como das Relações Exteriores, das Finanças, do Interior, das Obras Públicas e da Cultura, entre outros membros do Governo. A acompanhar Marcelo nesta primeira parte do longo dia estava o ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, e membros da comitiva presidencial e da Casa Civil.

A metáfora temporal não passaria despercebida quando, já no Palácio de Belém, depois de uma reunião em privado, Marcelo notou a coincidência perante a comunicação social: “Hoje que o sol apareceu e a chuva passou exatamente no momento da chegada de vossa excelência, é altura de dizer bem-vindo: não iremos desperdiçar esta oportunidade única”, disse.