Maria Begonha, candidata à liderança da Juventude Socialista, também insuflou o currículo entregue na Câmara Municipal de Lisboa. No currículo entregue na autarquia — que o Observador consultou nos serviços camarários — a dirigente da “jota” colocou corretamente o grau académico, mas disse falsamente ter tido uma experiência como assessora na área de Políticas Públicas Autárquicas, um cargo que nunca ocupou e que, segundo o processo de contratação, justificou em parte a sua contratação. Aquela que até aqui era uma questão ética, entra agora no domínio legal e Maria Begonha pode incorrer numa “contraordenação muito grave” ao abrigo do artigo 456 do Código de Contratação Pública e arrisca ainda ser alvo de um procedimento criminal por “falsas declarações” no currículo.
O vice-presidente da autarquia, Duarte Cordeiro, desvaloriza o assunto e, em declarações ao Observador, considera a falha no currículo como uma “mera incorreção“, mas um dos maiores especialistas do país em Direito Administrativo explica ao Observador que a situação pode configurar a abertura de um procedimento criminal por parte do Ministério Público. Já Maria Begonha insiste que não prestou nenhuma declaração falsa e que desempenhou as funções de assessora. Há dois aspetos que a desmentem: o contrato que assinou (que está publicado no site Base.gov) e a presidente da junta que a contratou.
Além da formação académica, na parte referente à experiência profissional a característica mais relevante apresentada no currículo entregue na autarquia era o facto de ter sido, entre 2014 e 2015, “assessora de Políticas Públicas e Desenvolvimento de Projetos Autárquicos na junta de freguesia de Benfica.” Problema: nunca ocupou essas funções. É a própria presidente da junta de freguesia de Benfica, Inês Drummond, que confirma ao Observador que Maria Begonha “nunca foi assessora na junta nessa área e nunca desempenhou esse tipo de funções, a única função que ocupou é a que está no site Base.gov, de apoio ao secretariado”.
Inês Drummond — que até é da mesma cor política de Begonha, o PS — exemplifica que o que Maria Begonha fazia na junta era, por exemplo, “responder a emails dos fregueses”. As declarações da autarca e deputada socialista provam que Maria Begonha mentiu no currículo entregue à câmara.
Além disso, Maria Begonha não poderia alegar que desconhecia as funções que ocupou, já que o contrato que assinou na junta de freguesia de Benfica é claro quanto às funções que ia desempenhar: “Prestação de serviços de apoio ao secretariado“.
Apesar destes factos, Maria Begonha, em declarações ao Observador, rejeita “categoricamente” ter prestado “qualquer falsa informação” sobre o currículo e garante: “As funções que desempenhei na junta de freguesia de Benfica estão descritas no meu curriculum enquanto funções e tarefas de assessoria política porque efetivamente as exerci no âmbito da minha prestação de serviços”.
A contradição com as declarações da presidente da junta de freguesia de Benfica, que disse que Maria Begonha nunca ocupou aquelas funções, agrava-se quando a candidata à liderança da JS garante ter sido a própria presidente da junta de freguesia a pedir-lhe que passasse a ocupar essas funções. “O exercício profissional que resultou do contrato que celebrei com a Junta de Freguesia de Benfica subordinou-se às necessidades que ao longo do tempo foram sendo identificadas pela autarquia, nomeadamente pelo executivo da junta e pela própria presidente Inês Drummond“, garante Maria Begonha, que assim desmente a deputada socialista.
A candidata a líder da “jota” diz ainda que exerceu “funções no âmbito de apoio à decisão política, desde a elaboração e acompanhamento dos relatórios da Reforma Administrativa da cidade de Lisboa, até ao acompanhamento de reuniões e projetos autárquicos diversos” para os quais lhe “foi depositada confiança”. Mas não é isso que diz a presidente da junta, nem o que está no contrato que assinou.
A falsa declaração pode ganhar contornos de ilegalidade, uma vez que o vice-presidente da CML, Duarte Cordeiro, destacou no próprio processo de contratação (que consta no processo consultado pelo Observador nos serviços da CML) que Maria Begonha “demonstra curricularmente uma experiência sólida na gestão de projeto e implementação de políticas públicas, encontrando-se particularmente apta no desempenho destas funções, suprindo pontualmente esta necessidade e cumpre na íntegra os referidos requisitos”.
Duarte Cordeiro acrescentava ainda que, perante esta experiência curricular — não confirmada –, “é imprescindível o recurso à contratação externa de uma prestadora de serviços, com experiência e formação específica nesta função.” Segundo o currículo, Maria Begonha tinha esta experiência, mas na verdade a experiência foi de secretariado.
A autarquia não tem por hábito escrutinar os currículos, mas a lei obriga o contratado a assumir as responsabilidades em caso de mentiras no currículo. O contrato assinado por Maria Begonha e consultado pelo Observador estabelece que “o declarante tem pleno conhecimento de que a prestação de falsas declarações implica, consoante o caso, a exclusão da proposta apresentada ou da caducidade de adjudicação que eventualmente sobre ela recaia e constitui uma contraordenação muito grave nos termos do artigo 456 CPP, a qual pode determinar a aplicação da sanção acessória de participar, como candidato (…) em qualquer procedimento adotado para a função de contratos públicos, sem prejuízo da participação à entidade competente para efeitos de procedimento criminal.”
Neste primeiro contrato com a autarquia, bem como naquele que assinou em 2017, Maria Begonha recebeu uma avença mensal de 4.615,57 euros brutos (3.753,50 euros mais IVA).
Paulo Otero, professor catedrático da Universidade de Lisboa e especialista em Direito Administrativo diz que a “única forma” de não haver um procedimento criminal neste caso era se a pessoa em questão alegasse “que se tratou de um erro e que pensou estar a desempenhar funções que não desempenhou“. No entanto, Otero explica que “se a presidente da junta confirmou que ela não desempenhou essas funções e se o contrato, que ela assinou, diz que não desempenhou essas funções, a tese do erro vai por água a baixo. Nesse caso, ela sabe bem que disse que tinha uma experiência que não tinha e que, portanto, pode ter que responder criminalmente por falsas declarações.”
Segundo Paulo Otero, “o apoio ao secretariado, como tarefa administrativa, é muito diferente de assessoria na área das políticas públicas. Pode dizer-se que, num conceito amplo, as tarefas administrativas também estariam relacionadas com políticas públicas, por estar numa junta, mas, no limite, essa tese abrangeria também a funcionária da limpeza.”
Duarte Cordeiro desvaloriza falha no currículo
O vice-presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Duarte Cordeiro, diz que conhece Maria Begonha e que não tem “nenhuma dúvida” de que ela tinha as características necessárias para ocupar o lugar. Para o número dois da câmara de Lisboa, o facto de Maria Begonha ter dito que tinha sido assessora sem o ter sido “não é relevante para o desempenho das funções que ocupou”.
Duarte Cordeiro diz que Maria Begonha tem “um bom currículo” e que fez uma “avaliação global”. O vice-presidente diz que não contratou a camarada de partido por ela ter sido assessora da área das políticas públicas e diz que, só destacou esse ponto no processo de contratação, porque fazia parte do “objeto do contrato” que ela assinou.
O vice-presidente da CML é visto no PS e na JS como uma espécie de mentor de Maria Begonha, sendo que a confiança política — como o próprio confessou ao Observador — pesou na contratação. Ou seja: Duarte Cordeiro contrataria sempre Maria Begonha, mesmo que não tivesse sido assessora.
Maria não disse que era mestre à autarquia
O facto de Maria Begonha ter sido apresentada como mestre no site da sua candidatura e no seu Linkedin foi a mentira com mais repercussão mediática, mas levantou, acima de tudo, problemas éticos. Ao contrário do que chegou a ser veiculado em grupos de WhatsApp e páginas de partidos da oposição em Lisboa, Maria Begonha não deu informações erradas quanto ao grau académico no currículo entregue na câmara municipal.
Candidata a líder da JS e ex-deputada municipal do PS com falso título de mestrado
No currículo entregue em 2016 à autarquia, Maria escreve sobre a formação académica:
- “2010-2012: Mestrado em Ciência Política na FCS/UNL — Grau de Pós-Graduação. A realizar dissertação de Mestrado em Elites Políticas e Recrutamento Político.
- 2007-2010: Licenciatura em Ciência Política e Relações Internacionais na FCSH da UNL. Média final: 16 valores.”
A polémica com o grau académico de Maria Begonha teve origem na declaração, em dois locais distintos, de um grau de mestrado em Ciência Política que, afinal, a candidata à liderança da Juventude Socialista não concluiu: na sua página de Linkedin, onde constava o mestrado em Ciência Política entre 2011 e 2012 na Universidade Nova de Lisboa, e na biografia da sua candidatura à liderança da JS, onde durante dois dias esteve a informação de que tinha o “grau de Mestre em Ciência Política”.
Maria Begonha justificou na altura, em declarações ao Observador, o erro na página com “gralhas” da responsabilidade do seu diretor de campanha e de quem gere o seu site. Mas sobre o Linkedin, Maria Begonha mostrou-se surpreendida, disse que na rede social, no máximo, devia estar “frequência de mestrado”. Não estava, como comprovou o Observador ao visitar a página. Dias depois, também a informação no Linkedin foi corrigida.
Na sequência desse caso, o diretor de campanha da candidata à liderança da JS, Tiago Estêvão Martins, teve mesmo de se demitir.
Director de campanha da candidata a líder da Juventude Socialista demite-se
As avenças na autarquia e a deslocação de militantes num autocarro da junta de freguesia para o lançamento da sua candidatura foram outras das polémicas em torno da candidatura.