Ao longo de quatro décadas, o Dakar mudou de sítio, alterou o modelo competitivo mas nunca perdeu o condão de ser um livro aberto de histórias atrás de histórias. Em 2019, ano que terá 5.000 quilómetros de competição ao longo de dez dias (70% dos quais percorridos na areia) apenas no Peru, essa marca não será exceção. Temos o caso de Mitchel Van den Brink, mecânico e navegador que será o mais novo de sempre a participar na prova com apenas 16 anos e na equipa do pai, Martin. Ou o caso de Nicola Dutto, antigo campeão europeu de enduro que seguiu os conselhos de Marc Coma após o grave acidente sofrido na Baja de Itália em 2010 e vai agora tornar-se o primeiro paraplégico em motos. Depois, há o caso de Lucas Barrón.

Aos 25 anos, o peruano que é viciado em todo o tipo de desportos – uma das suas grandes paixões, a par da música entre o rock e o hip hop – tem por hábito correr todos os dias, jogar futebol, nadar fazer wakeboard ou ir apenas ao ginásio. Desde pequeno que acompanha e segue de perto os desportos motorizados também por influência do pai, praticante no ativo. Agora, depois de dois “testes” exigentes nos ralis que correram bem e da necessária autorização da mãe, vai fazer dupla com Jacques no “Barrón x 2”, como copiloto. A partir de hoje, Lucas será o primeiro participante de sempre no Dakar com síndrome de Down.

“Vou ajudar o meu pai a ver o motor, a rota que seguimos e os pneus”, confessou na antecâmara da partida. “Desde pequeno que gosto muito de carros. Comecei com essa paixão porque via sempre carros nos filmes, via vídeos de corridas e também porque acompanhava o meu pai nas suas competências. Agora vou cumprir o sonho da minha vida. Quero mesmo muito correr com o meu pai, que me ensina tantas coisas. Quero conseguir ajudá-lo, ser a sua mão direita”, acrescentou.

Lucas com o pai, Jacques, que participou quatro vezes no Dakar mas na prova de motos, e o seu UTV (ERNESTO BENAVIDES/AFP/Getty Images)

Em conversa com a Marca, Lucas não conseguiu disfarçar algum nervosismo até por ser um dos mais requisitados para falar entre os cerca de 500 participantes mas admitiu que, quando o motor arrancasse, tudo isso ficaria para trás. “Não estou assustado, sou um homem valente. Estou muito feliz e orgulhoso. A outros miúdos como eu digo apenas para perseguirem os seus sonhos”, respondeu o copiloto de 25 anos ao jornal, que explica ainda a forma como funcionará a parceria com o pai: Jacques, que participou quatro vezes no Dakar mas em motos, irá pilotar e ter o livro da rota. No entanto, Lucas terá uma grande importância na parceria. “Depois da edição de 2013 tive um acidente que me magoou muito o ombro e tive de deixar de competir. Estou semi impedido nessa zona, o que faz do Lucas quase a minha mão direita, literalmente. Se ficarmos atolados, não tem problemas em empurrar. Como lhe costumo dizer a brincar, ele é a mão de obra e eu sou a direção técnica da equipa”, explica o pai, acrescentando que teve de existir uma permissão da mãe, Lucía, para a realização deste projeto.

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“A única condição que ficou definida, e vai ser assim, é que se o Lucas ficar cansado abandonamos. No entanto, completámos 1.000 quilómetros sem problemas e este ano repetimos o Desafio Inca, que é a prova do Dakar series, e também terminámos, até ultrapassando alguns carros. No início este era apenas um plano entre mim e o Lucas mas gerou-se um grande movimento, não pensei que pudesse ter tanta repercussão. As pessoas aproximam-se de nós na rua e dizem-lhe ‘És um herói’ e ele está tão feliz mesmo sem ter participado ainda na corrida”, acrescentou Jacques Barrón, antes de contar a reação da organização quando fez a apresentação da equipa: “A resposta quando lhes disse que o Lucas ia ser o copiloto foi ‘E?’. Fizeram os testes físicos e estava apto, tem também uma capacidade de atenção suficiente e deram-nos a licença”.

Jacques vai participar com o filho Lucas em 2019 mas tem outro sonho: juntar a filha, Adriana (ERNESTO BENAVIDES/AFP/Getty Images)

Em paralelo, Jacques Barrón, de 55 anos, confessou também o apoio do seu grande ídolo, Cyril Despres, piloto francês que já venceu cinco vezes o Dakar: “É meu amigo e escreveu-me através do Facebook para me dar ânimo. E também nos proibiu a todos de usarmos a camisola que tinha dado ao Lucas porque era só para ele. Miúdos como o Lucas podem desenvolver determinadas capacidades, no caso dele pode praticar qualquer desporto”.

Mesmo sem grandes patrocínios e com um dos carros mais modestos da competição, a dupla Barrón tem como principal meta terminar a prova, depois de cerca de um ano e meio de preparação. “Conheço grande parte das zonas pelas quais vai passar este Dakar e isso dá tranquilidade. No Desafio Inca, por exemplo, ajudou-me quando o carro estava atolado, já antes tinha empurrado o carro. Vê também os instrumentos de navegação, as temperaturas e a pressão dos pneus”, contou citado pelo Sport, que lança ainda um desafio futuro que seria ainda mais inesquecível para a família Barrón – acrescentar à equipa a filha, Adriana, que se dedica nesta fase à vela, e participar na prova de camiões do Dakar.