As noites até podem ser de copos, mas as manhãs são para ir ao mercado. À quarta-feira Constança Cordeiro vai à banca da Dona Domingas, em Cascais, ver o que há de produção nacional. Um dia ficou pasmada por encontrar mangas do Algarve. Comprou as mangas, levou-as para o bar e disse à equipa: “Vá, experimentem, brinquem com a manga.” Casca, polpa, caroço, pegaram em tudo — a ideia era ver o que resultava melhor num cocktail. Naquele dia foi manga, noutro pode ser cebola, aveia ou até croissant, transformado em licor depois de cozinhado 24 horas com vodca. Na Toca da Raposa não há ingredientes proibidos, só um lema: proporcionar sabores em estado líquido a partir do que é local.

Há três anos, era Constança a ser desafiada atrás de um balcão em Londres, e foi isso que mudou a forma como entende e faz cocktails, desde junho no seu próprio bar, em Lisboa. Foi para a capital inglesa aprender mais sobre mixologia, passou por espaços que não deixaram grande memória, até ir parar ao Peg and Patriot, um dos bares mais criativos da cidade e onde o dono tinha uma despensa tão cheia de alimentos como de garrafas. “No início ele mostrava-me o que tinha encomendado e eu punha-me a cheirar. E ele dizia: ‘não é para cheirar Constança, come’.” Habituada à abordagem mais clássica, “onde não se mexe muito no líquido em si”, a barmaid de 27 anos percebeu nessa altura que era possível fazer novos licores e fermentados, redestilando bebidas espirituosas com outros ingredientes. Como uma esponja, absorveu. E, apesar do álcool, não se esqueceu. “Foi aí que aprendi mais até hoje.”

Constança Cordeiro, ou Raposa Silvestre, a preparar o cocktail Abelha na sua Toca. © Gonçalo F. Santos

Na Toca da Raposa, nome que vem da alcunha pela qual Constança gosta de ser conhecida, Raposa Silvestre (que por sua vez vem do apelido de família Raposo e da vontade de “apanhar o que há no campo”), há uma máquina rotavapor junto à janela que parece ter saído simultaneamente de um laboratório e de uma estação espacial. Esta máquina é usada para destilar a baixas temperaturas, mas para Constança não são “esses luxos” a grande questão. “O que realmente importa é a maneira de pensar. Não ter barreiras mentais do que se pode ou não se pode usar. Porque não há limites. Se quiséssemos fazer bebidas com pedras da calçada fazíamos. Não quer dizer que façamos, só que é possível.”

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Na carta do bar não há pedras, mas há um cocktail inspirado numa sopa fria e com ingredientes como alho francês e natas, outro que podia ser confundido com o café do pequeno-almoço, com aveia tostada, um terceiro que leva o tal licor de croissant cozido a baixa temperatura ou ainda outro com cebola caramelizada. Todos têm nomes de animais, como se fossem os amigos da raposa, todos custam 11€, mas não há lugares cativos. “Como só trabalho com produtos de época, todos os meses mudamos três das 10 bebidas da carta”, diz Constança. Este outono, por exemplo, a grande questão é descobrir “qual a melhor forma de usar abóbora num cocktail” e casá-la com a laranja. Às vezes há ingredientes mais difíceis de trabalhar, mas também há telemóvel para tirar dúvidas com dois chefs que já são uma espécie de consultores oficiosos da Raposa: António Galapito do restaurante Prado e Manuel Liebaut, da equipa de Investigação e Desenvolvimento do Loco.

Trabalhar só com produtos locais foi outro ensinamento que veio de Londres, e que Constança despacha com ar blasé, ao mesmo tempo que sacode o cabelo pintado de cor de rosa dos olhos: “Não o faço para ser interessante. É muito mais fácil. Quer dizer, há mangas no Algarve.”

Na cozinha do bar, uma espécie de toca da Toca, estão as frutas e legumes que compra às quartas-feiras no Mercado de Cascais, as ervas aromáticas que tanto podem vir do Mercado da Ribeira como de um jardim em Sintra, folhas de figueira colhidas ao pé de um centro comercial e até pedaços de musgo dentro de um frasco. É líquen trazido do Alentejo, diz a Raposa. Qualquer dia é um cocktail.

Artigo publicado originalmente na revista Observador Lifestyle nº 2 (novembro 2018).