Com um exemplar (dos pequenos, em versão bolso) da Constituição da República na mão, o primeiro-ministro encerrou esta terça-feira o “Fórum de Políticas Públicas” dedicado à descentralização a abrir claramente a porta ao debate da regionalização. Mas com condições: que o debate não seja feito em época eleitoral; que seja feito depois de terminado o processo de transferência de competências para as autarquias e municípios que está em curso; que seja feito sem os “fantasmas” e os “equívocos” que contaminaram o debate há 20 anos e, claro, sem abdicar do referendo.
No discurso de encerramento do “Fórum de Políticas Públicas” do ISCTE dedicado ao tema da descentralização, desenvolvimento e poder local, António Costa defendeu de forma inequívoca que todo este processo deve ser conduzido com o requisito prévio do referendo, na medida em que há 20 anos o tema foi a referendo e ganhou o ‘não’. “Nem o Presidente da República deixaria que assim não fosse”, ironizou.
“Quanto ao debate da regionalização, devemos fazê-lo no seu devido tempo, porque fazê-lo fora de tempo conduzirá ao insucesso do seu resultado. E fazê-lo no seu devido tempo significa fazê-lo num momento de serenidade e não no momento de tensão política”, disse na sala do Senado da Assembleia da República, deixando claro que essa é condição primeira: “que não se faça o debate em ano de eleições, muito menos a meses de eleições. Isso seria contaminar o debate com a tensão própria de períodos pré-eleitorais”.
Defendendo sempre que o debate tem de ser “sereno” e “ancorado na Constituição”, António Costa recordou os artigos da lei fundamental que definem a organização do Estado: “Há três tipos de autarquias locais instituídas na Constituição, que são as freguesias, os municípios e as regiões administrativas. Mas se as duas primeiras funcionam desde 1976, a terceira, as regiões administrativas, aguardam a sua institucionalização desde 1976″, disse, defendendo que é para lá que devemos caminhar. Com serenidade, com precaução e segurança, mas com ambição, ressalvou.
“O que proponho é que nos ancoremos à Constituição, que é a melhor forma de ancorar o Estado democrático, e com base no que lá está previsto, assumamos um programa muito ambicioso de descentralização de forma a que nos vamos aproximando progressivamente dos níveis da UE. Que o façamos sem ansiedade mas com ambição, com gradualismo, que é bom conselheiro, e dando passos com segurança para criarmos condições sólidas para dar os passos seguintes“, afirmou o primeiro-ministro. E o passo seguinte é precisamente a regionalização.
Mas antes é preciso acabar com aquilo que chamou de “os equívocos” do passado, que contaminaram o debate do referendo em 1998. É que, segundo Costa, há 20 anos o debate esteve envolto em dúvidas constitucionais, muito devido ao facto de “grande parte do debate se ter feito com base em equívocos”, entre eles a confusão entre as regiões administrativas e as regiões autónomas da Madeira e Açores, que não são a mesma coisa, ou a confusão entre regionalização e descentralização — “como se regionalização não fosse apenas mais uma forma de descentralização, onde para além da transferência de competências para os municípios e freguesias, há também transferência de competências para essa outra entidade prevista na Constituição, que são as regiões administrativas”.
O terceiro equívoco do passado, segundo Costa, foi a ideia de que as regiões são entidades sem controlo financeiro onde não iria ser possível fiscalizar as finanças públicas. Não é assim, esclarece. “As autarquias locais revelaram sempre melhor qualidade na gestão das suas finanças públicas do que a administração central, basta ver a percentagem da dívida municipal no conjunto da dívida pública, além de que há autarquias a apresentar superavit“, afirmou. “Este é, portanto, outro fantasma que deve ser abolido deste debate”.
Mapa das regiões é “questão secundária”
Para o primeiro-ministro, há ainda outra questão que deve ser evitada, quando o debate da regionalização arrancar em força: a questão do mapa das regiões, que apelida de “secundária” face ao “essencial”. Para Costa, as cinco NUTS (Nomenclatura das Unidades Territoriais para Fins Estatísticos) previstas na altura, como agora, devem ser a base de trabalho, na medida em que já todos estão familiarizados com elas: Norte, Centro, Lisboa e Vale do Tejo, Alentejo e Algarve.
“Devemos evitar dividir-nos sobre o secundário quando nos podemos concentrar sobre o essencial. E o secundário é a reabertura do debate sobre os mapas da regiões: mal ou bem temos as 5 NUTs definidas há 50 anos, que podem não ser perfeitas, mas não há obras humanas perfeitas. Essa é uma base sólida que já todos conhecemos e a partir da qual podemos construir um modelo sem prejuízo de, no futuro, poder haver evoluções. Mas concentremo-nos naquilo que temos para poder avançar“, disse.
Comparando sempre o que se pode fazer agora com o que se fez no debate falhado de há 20 anos, Costa defendeu o “gradualismo” e deixou claro que o que o Governo definiu para esta legislatura foi “colocar a descentralização como prioridade”, para que, depois de testado o modelo de transferência de competências para o poder local (que ainda não está concluído), então aí sim se possa “regressar serenamente ao debate sobre a regionalização”. Nos planos do governo, até 2021 o processo de transferência de competências já estará concluído e, nessa altura, as autarquias já estarão a contribuir com 19% da despesa pública (atualmente contribuem com 14%, sendo que a média da UE está fixada nos 24%, meta que Costa espera alcançar em 2025).
Paralelamente a este processo, o primeiro-ministro voltou a defender que em 2021, quando houver eleições autárquicas, haja eleições para as áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, coisa que já defendia para 2017, mas sem efeito. “A experiência iniciada em 1979 está esgotada, está na hora de as áreas metropolitanas serem detentoras de competências próprias”, disse.
Também Fernando Medina, que tinha sido orador num dos painéis do “Fórum de Políticas Públicas”, defendeu que as eleições para as áreas metropolitanas deviam realizar-se logo depois das autárquicas. “Há competências que não fazem sentido à escala municipal como o sistema de saúde, os transportes ou a promoção económica porque são estruturas muito pesadas”, disse, defendendo por isso a “existência de um patamar metropolitano”.
Segundo Fernando Medina, só depois das próximas eleições autárquicas, de 2021, será possível iniciar a discussão em torno da regionalização. “Em 2017, a questão colocou-se mas não avançámos com a possibilidade de eleições diretas para a Área Metropolitana de Lisboa, porque estávamos em ano de autárquicas tal como agora se verifica”, afirmou ainda.
Dois em cada três autarcas a favor da regionalização
Segundo o estudo do ISCTE que foi esta terça-feira apresentado naquele fórum, que decorreu na sala do Senado na Assembleia da República, dois em cada três autarcas são a favor da regionalização a curto prazo. De acordo com o inquérito “Descentralização e Reorganização do Estado” realizado pelo ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa, mais de dois terços das autarquias do país é a favor da regionalização a curto prazo com órgãos eleitos. “Questionámos 107 presidentes de câmara, uma amostra muito robusta, representativa da repartição partidária dos municípios e das regiões de norte a sul país, incluindo as ilhas”, disse Raul Lopes, coordenador do inquérito, na apresentação dos resultados.
Sobre a criação de regiões administrativas, contudo, há mais aceitação à esquerda do que à direita, ainda que muitos autarcas da direita política tenham “manifestado a sua concordância com a regionalização”, nota. A maioria defende “uma alteração da geometria dos círculos eleitorais atualmente assente nos distritos, para a configuração das NUTS III”, acrescentou ainda o coordenador do estudo.