Nascido em Paris, em 1952, Jacques Audiard é filho do lendário argumentista, escritor e também realizador Michael Audiard, e um dos mais importantes realizadores franceses contemporâneos. Ganhou o Festival de Cannes de 2015 com ‘Dheepan’ e é autor dos policiais ‘De Tanto Bater o Meu Coração Parou’ ou ‘Nos Meus Lábios’, ou ainda de dramas como ‘Um Herói Muito Discreto’ e ‘Ferrugem e Osso’, entre outros. Audiard conversou com o ‘Observador’ sobre o seu novo filme, ‘Os Irmãos Sisters’, um “western” interpretado por Joaquin Phoenix, John C. Reilly (também produtor), Jake Gyllenhaal e Riz Ahmed, que rodou não nos EUA, mas em Espanha e na Roménia, e lhe valeu o Prémio de Melhor Realizador no Festival de Veneza.

[Veja um “trailer” de ‘Os Irmãos Sisters’]

‘Os Irmãos Sisters’ é um filme muito especial.  Um “western” realizado por um francês, que adapta um livro de um canadiano, rodado em Espanha e na Roménia, com um elenco de atores na maioria americanos. Não é um “western” clássico, não é uma homenagem ao “western” e não é uma desconstrução do género. O que lhe chamaria? Um “western” ao qual sobrepôs a sua sensibilidade francesa?
Eu estarei talvez mal colocado para definir o filme. Em contrapartida, sei do que estava à procura enquanto o fazia. Sou francês, o “western” não é o meu mito fundador, logo tenho pouca legitimidade para o abordar, por um lado, e pelo outro, confesso que não tenho um conhecimento enciclopédico do género. Trabalhei com um argumentista, Thomas Bidegain, que conhece bem o “western”, eu não. Quando li o livro de Patrick DeWitt, o que vi nele e gostei, foi que se trata de um conto, é como um conto de fadas. Os irmãos não são dois adultos, são na verdade duas crianças, que discutem, que riem, que fazem disparates, como se tivessem 12 anos. E um é o irmão mau e o outro o irmão bom. Foi a linha que segui. Digamos que o filme é um “western”, é uma história de época e é um conto gótico. E nunca seria uma desconstrução do “western”, porque essas coisas não me agradam (risos).

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Há uma tensão entre as quatro personagens principais? De um lado temos Eli e Herman, que querem ser pessoas melhores, e este quer também melhorar o mundo; e do outro, estão Charlie e John, que são imperfeitos, Charlie muito mais do que John.
Há, sim. Eu tinha esta ideia de criar, através de quatro personagens diferentes, quatro figuras que representassem quatro escolhas possíveis de vida num dado momento da história. E uma utopia podia mudar-lhes a vida, mesmo que fosse catastrófica.

Disse numa entrevista que deu no Festival de Veneza, que um dos principais temas do filme era a herança que recebemos dos nossos pais. Pode explicar melhor?
Muitas vezes, nos meus filmes, há uma espécie de figura paternal que tem que ser morta, e o que me interessa aí é a herança que ela deixa. E o “western” tem muito a ver com isso. O que fazemos da violência que se herdou dos pais fundadores? Em que momento a lei vai aparecer, a democracia vai chegar, e as armas vão ser deixadas á entrada da cidade? Isto está em ‘Rio Bravo’, em ‘O Homem que Matou Liberty Valance’ e em muitos outros “westerns”.

[Veja uma cena de ‘Os Irmãos Sisters’]

E o filme passa-se precisamente durante a construção do Oeste real, mas também do Oeste mítico.
Sim, exatamente. Em 1850, o momento em que tudo é possível, incluindo a maior selvajaria.

Outro dos grandes temas do filme, talvez mesmo o principal, é o amor fraternal. Concorda? Aliás, ‘Os Irmãos Sisters’ é dedicado ao seu falecido irmão, François.
Sim, é, inteiramente. Só que ao princípio não me tinha apercebido disso. É curioso como ao nos metermos num género, metemos lá também um parte muito íntima de nós mesmos sem nos apercebermos disso. Eu escrevi o filme, rodei-o, passaram-se vários meses e mostrei-o à minha cunhada, a viúva do meu irmão. Ela tirou as suas notas, depois almoçámos os dois e no fim da refeição, ela disse-me: “Dedica o filme ao François”. E eu não tinha pensado nisso nem por um segundo. Diz-se por vezes que o inconsciente é estúpido. Neste caso, eu é que fui estúpido.

Sei que há algum tempo que queria fazer um filme com atores americanos, mas não necessariamente nos EUA ou em Hollywood. Este projeto chegou-lhe pelas mãos de John C. Reilly, não foi?
Foi. E também através da mulher dele, Alison Dickey, que é uma das produtoras do filme. O John não conhecia bem a minha filmografia, mas ela sim, tinha visto bastantes filmes meus. E eles andavam também à procura de um realizador que adaptasse o livro.

Eles faziam questão de filmar nos EUA, ou não?
Eu cheguei a ir lá à procura de locais para filmar, mas está tudo muito visto, por isso optei por inventar o Oeste na Europa.

E optou pela Espanha e pela Roménia. E para nós, espectadores, é como se estivéssemos nos EUA, não se dá pela diferença.
Para mim, a paisagem é menos importante do que as personagens, mas ainda bem que diz isso. Curiosamente, houve um espectador que me disse: “É a primeira vez que vejo o mar num ‘western’”. E fui incapaz de lhe citar outro “western” onde isso acontece.

[Veja imagens da rodagem e ouça os actores falar do filme]

Aliás, há muitas estreias no seu filme. É o primeiro “western” em língua inglesa feito por um francês, também o primeiro em que se vê uma escova de dentes – um objeto muito importante na história – e não há tiroteio final com o vilão e os seus homens.
O livro tem um final convencional, os irmãos matam o Comodoro, mas achei que já havia mortos suficientes e Charlie e Eli tinham decidido acabar com as matanças.

Nos seus filmes, há sempre, ou quase sempre, uma personagem que quer mudar de vida ou que se quer melhorar como pessoa. E aqui, é Eli.
A vida que Eli vive esgotou-se. Ele sabe disso, mas o irmão não. É o tema da segunda vida. Há um filósofo americano chamado Stanley Cavell, que aplicou à comédia uma teoria que desenvolveu sobre a busca da felicidade. É um tópico que me agrada muito e que abordo muitas vezes nos meus filmes. Alguém está numa encruzilhada da sua vida. Será que volta para trás ou arrisca avançar? Nestes casos, quanto custa essa nova vida? E como se vai viver essa vida, e a expensas de quem?

Jacques Audiard (n. 1952) ganhou o Festival de Cannes em 2015 com ‘Dheepan’

No final do filme, há um plano em que filma John C. Reilly recortado contra uma porta. É uma citação deliberada de ‘A Desaparecida’? Só que o John Wayne vai partir no filme do John Ford, e o John C. Reilly regressou a casa.
Exato, mas esse plano é uma mistura de ‘A Desaparecida’ e ‘A Noite do Caçador’. Quando escrevemos o filme, o Thomas e eu, tivemos como modelo não um “western”, mas sim ‘A Noite do Caçador’ – um conto de fadas gótico, cá está. (risos)

Não gosta mesmo de “westerns”?
Gosto dos que são meus contemporâneos. De ‘Duelo no Missouri’, de Arthur Penn, ‘As Brancas Montanhas da Morte’, do Pollack… E gosto dos “westerns” tardios de John Ford, e de ‘Rio Bravo’, de Howard Hawks, claro.

[Veja uma cena do filme]

John C. Reilly ia interpretar Eli logo desde o início. Como é que apareceu Joaquin Phoenix?
Foi em dois tempos. O John queria trabalhar com o Joaquin e eu gosto muito, muito dele, logo não houve problemas. Depois, houve um fase em que parei de escolher atores e reescrevi o argumento, sozinho ou com o Thomas. Desenvolvi bastante as personagens de Herman e John Morris, e a partir daí tornou-se muito fácil fazer a escolha dos atores. Eu tinha conhecido o Jake Gyllenhaal em Los Angeles há alguns anos e ele tinha-me dito que gostaria muito de trabalhar comigo. Por isso, foi tudo muito rápido com o Jake. Tinha visto o Riz Ahmed na série ‘The Night Of’, e escolhi-o logo também.

O Joaquin Phoenix tem fama de ser um actor “difícil” de ser dirigido e de personalidade, de ser muito idiossincrático. Como é que se deu com ele?
Eu diria que ele é diferente dos outros. Mas gosto disso. Às vezes o Joaquin pode ser um bocado irritante, mas é também muito inteligente. Tem uma forma de inteligência que o ator comum não tem. Logo, não pode ser comum, e há inevitavelmente fricções. Pessoalmente, não gosto muito dessa ideia do ator “difícil”. Acho que todos os atores o são.

E como reage a isso enquanto realizador?
Sei que chegará o momento em que terei que falar a mesmo língua que o Joaquin, que o John, o Jake e o Riz. Porque eles não falam todos a mesma língua enquanto atores. Sendo que a língua do Joaquin é um pouco mais complicada. (risos) O papel do realizador é compreender todas essas línguas e dar-lhes homogeneidade. E tem que o fazer mantendo, ao mesmo tempo, a especificidade de cada um. Pode também ser difícil, mas é um desafio de que gosto muito. Todos os atores muito bons põem problemas aos realizadores, através do seu talento. Precisamente porque não representam como os outros. E isso é entusiasmante.