Por vezes, basta olhar duas vezes para encontrar novos elementos numa obra de arte que podem ter diversos significados. Foi o que aconteceu a Kelly Grovier, que descobriu um pormenor em comum nas duas versões do quadro da Virgem do Rochedo, de Leonardo Da Vinci: uma árvore.

Aparece, ligeiramente transformada de versão para versão, acima da mão de Maria. As folhas da palmeira aparentemente inócua são moldadas de tal forma que sobressaem precisamente os contornos de uma concha de vieira aberta”, escreve o poeta e crítico cultural americano na BBC.

Para Grovier, mais do que um elemento artístico, esta árvore pode ser uma pista que leva a reconsiderar a evolução e origem do planeta Terra. O detalhe leva a desafiar “a conceção da Igreja sobre a criação do mundo”, escreve Grovier. O crítico conclui, através da sua observação, que Da Vinci acreditava que “os picos dos Alpes eram outrora o chão dos mares”.

A primeira versão no museu Louvre, em Paris.

Existem duas versões da pintura: aquela que se pensa ser a mais antiga, concluída por volta de 1486, encontra-se no museu Louvre, em Paris; a outra pode ser encontrada no The National Gallery, em Londres, tendo sido terminada em 1508. As diferenças de cor das duas versões saltam à vista. Fora isso, ambas partilham a mesma composição e os mesmos elementos. Mas, na verdade, as diferentes versões são pouco relevantes para a teoria defendida por Grovier.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Para justificar o que defende, o crítico começa por explicar o significado deste quadro. Escreve Grovier que esta obra não se baseia em passagens da Bíblia mas numa tradição criada pelo povo que diz que Jesus e o profeta João Batista se encontram por acaso ainda crianças enquanto fugiam do Massacre dos Inocentes — a execução de todas as crianças do sexo masculino ordenada por Herodes, o Grande. Agrupados na pintura, as quatro figuras da obra (Jesus, João, Maria e Uriel) aparecem encostadas a um conjunto irregular de rochas elevadas.

Mas em vez de Da Vinci “elevar e entronizar a mãe e as crianças entre um coro de anjos, como seria de esperar, Leonardo escavou nas profundezas da sua imaginação uma gruta suja e sem conforto“. Porquê? A resposta revela o que, acredita Grovier, Da Vinci defenderia em relação às origens da Terra.

A segunda versão do quadro, exposta em Londres.

O elemento poderia facilmente ser entendido como nada mais do que uma simples sombra das folhas. Porém, ao explorar os cadernos de notas do pintor, o especialista em arte acredita que “as folhas da árvore sejam idênticas aos raios encontrados dentro de uma concha de vieira“. Isto porque, escreve o crítico, Da Vinci acreditava — e confidenciou nos seus cadernos — que “os picos dos Alpes foram outrora o chão dos mares”. E a concha nas montanhas comprovariam isso.

A Terra era, portanto, muito mais antiga e muito mais desornenadamente moldada por violentos cataclismos e sismos, durante um maior periodo de tempo do que a Igreja estaria disposta a admitir”, escreve Grovier.

Por fim, Kelly Grovier explica as implicâncias religiosas que podem surgir da interpretação destes elementos presentes na obra. “Ao ocultar nas suas pinturas uma alusão à alegação herética de que as conchas encontradas nas montanhas são evidência de que os ensinamentos da Igreja sobre a criação da Terra eram equivocados e supersticiosos, Leonardo deixou através da sua obra vulneráveis ​​às acusações de heresia.”