Enviado especial ao Vaticano
O tema do dia era a prestação de contas. Na Aula Nova do Sínodo, imponente auditório mesmo ao lado da basílica de São Pedro, no Vaticano, o Papa e 190 líderes católicos de todo o mundo debateram, esta sexta-feira, a responsabilidade da hierarquia da Igreja Católica nos casos de abusos sexuais de menores cometidos por membros do clero. Ali bem perto, mas fora dos muros do Vaticano, num hotel romano, um grupo de vítimas de abuso juntava-se para contar as suas histórias publicamente. Vítimas não. Apresentam-se como sobreviventes. Já foram vítimas — primeiro de padres, depois de bispos que os ignoraram. Sofreram, mas sobreviveram e fizeram questão de viajar de todos os pontos do globo para estarem em Roma nesta semana histórica e pedirem aos líderes da Igreja que os ouçam. Um dos cardeais participantes da cimeira decidiu ouvir pessoalmente as histórias.
“O meu nome é Jean-Marie e sou suíço”, começou um homem, que, em criança, tinha tido problemas cognitivos. Sem recursos, a família, profundamente católica, confiou num padre que conheciam bem. “O padre prometeu que me ia ajudar”, lembrou, antes de começar a chorar. “Tinha 11 anos.” Os abusos começaram na segunda sessão da suposta terapia: “O padre disse-me que precisava de uma fotografia de um jovem rapaz nu para as aulas de educação sexual que ele dava”. Jean-Marie conseguiu contornar a situação e a fotografia nunca foi tirada. Mas o rapaz estava marcado.
Numa das sessões seguintes, o padre não se inibiu. “Um dia, chamou-me ao escritório dele, mandou-me tirar a roupa, meteu-me na cama e começou a mexer-me nas pernas e nos genitais”, lembrou. Jean-Marie achou estranho, mas, com 11 anos e sem saber o que lhe estava a acontecer, acreditou na justificação do padre: “Fazia parte da terapia”. A situação repetiu-se, até chegar o dia em que o padre lhe fez uma pergunta. “Já alguma vez viste um homem a ejacular? Eu disse que não, não sabia o que era, tinha medo. E ele começou a masturbar-se. Lembro-me de olhar pela janela e pensar que não queria estar ali.”
Só mais tarde, quando ouviu dizer por ali que um professor da região tinha sido despedido por ter abusado sexualmente de uma criança, é que percebeu que também podia ter sido uma vítima. “Não sabia o que era abuso sexual, mas pensei que, se calhar, era o que me tinha acontecido.” Guardou, ainda assim, a história para si até ter 32 anos, idade com que terminou o doutoramento. Ainda se lembra de um dia ter escrito o que lhe tinha acontecido, de ânimo leve. Só quando olhou para o que escreveu é que percebeu a gravidade da situação. No mesmo dia, foi às autoridades civis, que lhe disseram que nada havia a fazer. Era tarde. Foi, então, à Igreja contar tudo. Ouviram-no e deram-lhe razão.
Abusos na Igreja. “Os primeiros inimigos estão entre nós, entre os bispos e os padres”
Não foi isso que aconteceu com outro sobrevivente, um polaco que se chegou à frente e que contou a sua história, entre lágrimas, com o auxílio de uma tradutora. Com 13 anos, foi molestado durante uma série de meses. E lamentou: “Os abusos destruíram-me a vida toda, mas o padre foi suspenso três anos.” Foi um dos sobreviventes que se encontrou com o Papa na quarta-feira e lembrou o momento em que Francisco se aproximou dele e, invertendo o protocolo, lhe beijou a mão. “Ele sabia quem eu era. Que era um sobrevivente. Espero que isto mude a forma como o Vaticano lida com os sobreviventes.”
Outro polaco, que também contou a sua história com a ajuda da tradutora, lembrou que o seu “pesadelo começou aos 9 anos”. Com 21 anos, dirigiu-se ao bispo da sua diocese e contou tudo o que tinha acontecido. E aí começou uma “experiência horrível” para o jovem. “A Igreja não acreditou em mim e fez tudo para me retratar como uma pessoa terrível. Diziam que eu não era digno de confiança. E, no final da investigação interna, a Igreja determinou que o padre era inocente”, disse, em lágrimas. Mas o caso viria a inverter-se. “Após seis anos nos tribunais civis, o tribunal acreditou em mim e o padre foi condenado a três anos de prisão. Ainda assim, a Igreja nunca me apoiou. Hoje, ainda estou na lista negra deles.”
Nas paredes da sala estavam penduradas várias fotografias antigas de todas aquelas pessoas com a idade que tinham quando sofreram os abusos. Uma vítima irlandesa levou um pequeno cordeiro de peluche e exibiu uma fotografia de si própria com seis anos, ao lado de outra de um padre com cerca de 60. “Este é o padre que abusou de mim. E este é o cordeiro de peluche que ele me ofereceu. Chamava-me cordeirinho. Quando eu ia receber a comunhão, ele dizia: ‘O Corpo de Cristo, cordeirinho’. E eu não percebia. Hoje percebo. Eu era o cordeiro que ele tinha escolhido para ir para o matadouro.”
A ouvir algumas destas histórias esteve o cardeal alemão Reinhard Marx, arcebispo de Munique e presidente da Conferência Episcopal Alemã, que, antes desta sessão pública, esteve reunido em privado com os sobreviventes. É ele o representante da Alemanha na reunião magna dos bispos que decorre até domingo e, por ter de ir para a sessão da tarde, que começava às 16h, teve de sair antes. Segundo informou fonte o Vaticano, foi o próprio cardeal Marx quem tomou a iniciativa de se encontrar com o grupo de 16 vítimas de abuso, unidas pela associação ECA (Ending Clergy Abuse). Informou o Papa Francisco da sua ideia e aproveitou a hora de almoço do segundo dia para o fazer. Não saiu sem agradecer às vítimas por contarem as suas histórias em público. “Estão a fazer uma coisa muito importante.”