Há cerca de um ano realizava-se a 90.ª cerimónia dos Óscares. A 4 de março de 2018 subiam ao palco do Dolby Theatre, em Hollywood, os maiores ícones do cinema. Do outro lado do mundo, os Jogos Olímpicos de Inverno tinham terminado apenas dez dias antes. Pyeongchang, na Coreia do Sul, foi a cidade escolhida para receber, não os atores mais emblemáticos do planeta, mas os desportistas mais incríveis da atualidade.

Um mês antes da maior cerimónia de cinema do mundo, os atletas desfilavam, não sobre uma passadeira vermelha, mas no Estádio Olímpico de Pyeongchang que dava as boas-vindas aos melhores praticantes de 15 modalidades diferentes. Todos os países participaram no cortejo com direito a erguer a sua bandeira, exceto um: a Rússia. Os atletas russos tiveram de participar sob o uso da bandeira olímpica. E porquê? O governo russo era suspeito de orquestrar um dos mais complexos esquemas de uso de doping e manipulação de testes anti-dopagem de toda a história dos Jogos Olímpicos.

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O escândalo rebentou em 2016. O governo russo tinha acabado ser acusado de patrocinar o esquema de dopagem de atletas e de falsear os testes para que estes parecessem limpos na hora das competições. Estas foram as conclusões da investigação do canadiano Richard McLaren, da Agência Mundial Anti-Dopagem (WADA). Do lado do Kremlin, estariam envolvidos o vice-ministro do desporto, Yuri Nagornykh, o ministro do desporto, Vitaly Mutka e o presidente da Rússia, Vladimir Putin. Mas o cérebro de toda esta operação – Método do Desaparecimento Positivo – foi Grigory Rodchenkov, o químico que arranjou forma de manipular os testes e que era, na verdade, o chefe do laboratório anti-doping da Rússia. Ou seja, aquele que devia ser responsável por evitar a fraude era aquele que a planeava ao mais ínfimo pormenor.

Grigory Rodchenkov. O químico que virou “Garganta Funda” e tramou o desporto russo

A história de Rodchenkov chocou a comunidade olímpica mas não tardaria a motivar o interesse de adeptos de desporto (e não só) por todo o mundo fora. Um dos momentos em que isso aconteceu foi, precisamente, nos Óscares de 2018, quando a longa-metragem Ícaro venceu a estatueta dourada para melhor documentário. A estrela era o químico que se tornou num autêntico caça-medalhas, enquanto concebia planos para dopar os atletas russos e os preparava para os Jogos Olímpicos.

A ideia original do realizador Bryan Fogel era fazer um documentário sobre o efeito do doping. Depois do escândalo relacionado com o uso da substância química que levou o ciclista Lance Armstrong a perder todos os títulos, Fogel queria dopar-se e sentir o efeito da droga no organismo para fazer um relato fiel aos sintomas do doping. E, sem ajuda de um médico nos Estados Unidos que lhe fizesse um plano adequado, acabou por pedir ajuda de Rodchenkov. O cientista traçou um plano de uso de doping para o realizador que, gradualmente, começou a sentir progressos na forma física.

Mas enquanto decorriam as filmagens para o documentário, o esquema do governo russo veio ao de cima e foi aí que Bryan Fogel se apercebeu de que o chefe do laboratório anti-doping era, de facto, o elo de ligação do esquema de corrupção entre atletas russos e o governo de Vladimir Putin. Esta situação foi uma reviravolta no guião do filme e, claro, na vida de Rodchenkov.

O químico russo viu-se obrigado a deixar a Rússia e veio viver para os Estados Unidos. Ao contrário do que poderia ser espectável, Rodchenkov não negou as conclusões do relatório de McLaren. Na verdade, admitiu com respostas simples e curtas tudo o que tinha feito, deu nomes, pôs em causa a credibilidade do próprio governo da Rússia e tornou-se o “Garganta Funda” da investigação. Ou seja, contou tudo sobre o esquema de manipulação de testes anti-dopagem russo. Hoje, está nos Estados Unidos, em parte incerta, e não se sabe exatamente qual é o aspeto de Rodchenkov (que pode ter pintado o cabelo, cortado a barba ou até mesmo ter feito intervenções cirúrgicas). O químico deu uma entrevista à BBC no início do ano passado, de cara totalmente coberta, dias antes de se tornar o protagonista de um documentário vencedor de um Óscar.

O que é que mudou num ano?

Primeiro é preciso saber o que é que sofreu alterações desde que o escândalo veio a público. Na Rússia, pouca coisa parece ter mudado e no que toca ao Comité Internacional, as investigações prosseguem, mas o controlo obedece praticamente aos mesmos rituais. O Diretor Geral do Comité Olímpico em Portugal reconhece o impacto mediático do documentário Ícaro, mas afirma que “as práticas pouco ou nada mudaram”. João Paulo Almeida relembra que “o laboratório russo esteve suspenso pela Agência Mundial Antidopagem e agora foi readmitido num processo que tem contornos de transparência muito duvidosos”. Logo, “há fortes indícios de que este tipo de situações [manipulação de testes anti-dopagem] se possam repetir”, alerta.

O Diretor Geral do Comité Olímpico diz que a “posição dos atletas é pouco independente”, o que leva à “criação de entidades representativas dos atletas independentes”. É importante relembrar que apesar de mais de mil atletas russos de todas as modalidades terem estado envolvidos no escândalo, nem todos participaram nas competições olímpicas dopados.

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Este foi o motivo pelo qual o Comité Olímpico optou por levar os atletas russos aos Jogos Olímpicos de Inverno de 2018 na mesma. A Rússia sofreu a punição de não ter direito a protagonismo na competição, mas os desportistas puderam participar na mesma usando a bandeira olímpica. João Paulo Almeida vê a mesma solução como uma possibilidade para os Jogos Olímpicos de Verão de 2020, em Tóquio, mas salienta que “no universo olímpico isso causa algum desconforto porque os atletas competem por um país”.

Para o Diretor Geral, Ícaro foi “encarado com algum desconforto”, “colocou em xeque algumas vulnerabilidades do movimento desportivo” e pode ter servido para alimentar “algum preconceito de atletas de outros países e de outras organizações desportivas relativamente aos russos, mas não contribuiu para que as pessoas estejam mais sensíveis e mais preparadas para conhecer o impacto do doping na sua saúde”.

Em março do ano passado, quando Ícaro ganhou o Óscar de melhor documentário, o assessor de imprensa de Vladimir Putin, Dimitry Peskov, disse, como explica o jornal russo Sputnick, que o Kremlin não devia comentar a situação, porque todos estavam “a par da natureza contraditória da personalidade de Rodchenkov”; por isso era preciso “ter muito cuidado com aquilo em que se baseavam as suas declarações”. Hoje, Rodchenkov está num programa de proteção de testemunhas, Yuri Nagornykh demitiu-se do cargo de vice-ministro do desporto, Vitaly Mutka ascendeu a vice-presidente e Vladimir Putin continua a negar as conclusões da investigação do relatório McLaren.