Perante um palco descarnado, há seis telões, de enormes dimensões, que se impõem. Soa aquela imagem de alcatifas suspensas, num outro dia, num outro sítio, podia ser uma espécie de feira de tapetes de Arraiolos, mas aqui e agora não. São peças de cenografia, paredes de pano, algumas com recortes – janelas, se preferir – algumas vindas da exposição “Morte del Desiderio”, que Vasco Araújo fez na Galeria Francisco Fino, em Lisboa, durante o ano de 2018. Particularmente uma imagem cinzenta, com esculturas antigas, que, na tal exposição, Vasco Araújo preencheu com um texto encomendado a José Maria Vieira Mendes, “A Morte do Desejo”. Ora é precisamente esse texto que o Cão Solteiro e Vasco Araújo trazem para palco. “mise en abyme” está no São Luiz Teatro Municipal entre esta sexta-feira e domingo.

O título do espectáculo é precisamente o nome de um conceito ligado ao universo das artes onde uma obra contém outra obra ou a memória de uma outra obra. “Desde o início pensámos que este espectáculo podia começar no conceito do mise en abyme. Foi o ponto de partida, pareceu-nos que a ideia principal era essa, um texto que vem para um telão, que é das artes plásticas, que passa para um palco, por aí. E o texto comporta, à partida, uma espécie de ficção porque se anuncia como argumento de cinema para um filme que não vai ser filmado, sabendo que irá fazer parte de uma peça dentro das artes plásticas e depois de uma peça de teatro que também não vai fazer o filme. Tem tudo a ver connosco”, explica Paula Sá Nogueira – uma das diretoras da estrutura par de Joana Dilão e de Mariana Sá Nogueira.

E é óbvio que tem tudo a ver com o Cão Solteiro. Ele que desde a sua fundação, em 1998, se tem ocupado de cruzar disciplinas em palco, experimentações que unem pintura e texto, cinema e teatro, aquela ideia de “como é que se podem [as várias disciplinas da arte] esticar de tal forma que passem a ser outras coisas ou a evoluir para outros lados”, enquadra Paula Sá Nogueira. Está sempre presente a noção de elasticidade, de esticar objetos e conceitos até não se poder esticar mais, até as coisas se deformarem, ficarem coxas ou cegas e por isso novas e diferentes.

Morceaude Bravoure ©Joana Dilão

Convenhamos que o texto de José Maria Vieira Mendes é ideal para cumprir esse efeito. É profundamente absurdo, começa por ter quatro personagens – que às vezes são homens e se expressam no feminino, ou o inverso – para depois outras surgirem sem qualquer aviso, há até quem diga que não têm passado. São cenas fugazes e que se sucedem à velocidade de um guião de cinema, situações que decorrem num jardim que aqui nunca chega a ser jardim, poltronas para a neve se sentar, mas nunca neva, nem nunca chove, embora as didascálias o indiquem. Não temos grandes certezas. Sabemos que grande parte do enredo decorre em Itália (Bolonha, Bolzano, Florença) e que as personagens têm todas nomes italianos, pronunciados a rigor. Sabemos que há duas delas que escrevem, ficção, ou poesia em prosa, algures por aí.

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E sabemos, como esta passagem indica, que isto é contra a cultura dos sentimentos: “É que capitalizar o sentimento em nome da arte… Eu confesso que só me apetece chorar, mas se chorar, sinto-me a compactuar, percebes? E é por isso que não posso chorar, mas a sério… Quando assisto à capitalização do sentimento, só me apetece chorar. Parece que me estão a impor uma cultura dos afetos. E essa ideia assusta-me entristece-me porque é a favor da ausência de diálogo. Que conversa é que podes ter com um ‘gosto’ / ‘não gosto’? E além disso faz-nos sentir que pertencemos a qualquer coisa, fomenta assim um sentimento de união e pertença (os que gostam e os que não gostam). A preservação de uma certa maneira de sentir. Como se todos sentíssemos da mesma maneira. E depois quem não sente assim é porque é cínico e não se deixa envolver, é cerebral e por aí fora, ou seja, é uma pessoa com uma carência. Como se tivéssemos todos de ser melancólicos e concordantes. Por amor de Deus. Já não tenho idade para isto. Estou quase a reformar-me.”

O Cão Solteiro – não é algo de agora – sempre foi contra a predominância dos sentimentos:

“Nós nunca trabalhámos na capitalização dos sentimentos, a nós não nos interessa comunicar com base nos sentimentos. Na Antológica, por exemplo, também com o texto do José Maria, já abordámos essa questão, fomos bastante mais claros, onde explicávamos claramente que somos atores em cena a construir um trabalho e que não vale a pena estarem a esperar que nós choremos por aqueles que estão na plateia, portanto se querem chorar terão de fazer isso por eles próprios”, declara Paula Sá Nogueira.

Mise en Abyme ©Joana Dilão

Regressando ao palco, há uma elemento que convém lembrar. À boca de cena há uma atriz sentada numa cadeira, que nunca fala. Na sua diagonal existe a chamada “mesa do dinheiro”, onde se contam ininterruptamente notas e mais notas por lá empilhadas. Mais um passo para reforçar a desconexão deste espectáculo: “Uma das coisas que queríamos era dissociar os elementos todos, estes telões podem ser lidos como uma cenografia mas também pode ser lido como um objeto; o texto vale por si só; uma possível filmagem, que também não existe, está só representada fisicamente pelas torções, ou seja, estás a representar com os pés para um lado e o tronco para o outro; e ainda conseguimos fazer esta coisa da performance, há duas cenas que se aproximam mais disso do que de outra coisa qualquer, saem do teatro, do texto, do cinema, são duas ações”.

Paulada na nuca

Se se estiver o tempo todo sentado numa cadeira, virado para a frente, a última coisa que se espera é que venha alguém por trás e nos dê uma “paulada na nuca”, expressão usada pelos próprios. Mas ao Cão Solteiro calhou outra sorte, e não foi apenas com os corte da DGartes. É que este espectáculo era para ser apresentado no Teatro Municipal Maria Matos, no final de 2018, mas nem aí as coisas correram bem. “Isto foi programado pelo Mark Deputter para o Maria Matos, para 2018, e caía já em outubro ou novembro. Mas como o teatro fechou, o restinho de programação do Maria Matos foi distribuído por vários sítios e foi assim que viemos parar ao São Luiz. Os nossos espectáculos contêm as nossas realidades, porque elas também vão dando forma às nossas questões, portanto se há alguma mudança entre o que podia ter sido lá e o que pode ser aqui é, de facto, termos ficado sem subsídio, e isso claro que tem que se refletir neste espectáculo. E não estou a falar economicamente, porque aí nós pedimos mais dinheiro à EGEAC porque não tínhamos como fazer isto e eles reforçaram-nos a verba, foram fantásticos nesse aspeto”.

Recapitulando este recente episódio, o Cão Solteiro foi considerado não elegível para o Programa de Apoio Sustentado da DGArtes para o período de 2018-2021. Significa isto que não foram cumpridos os requisitos num dos cinco critérios de apreciação (plano de atividades, equipa e entidade, repercussão social, projeto de gestão e correspondência aos objetivos). Porque para esta concurso era preciso ter mais de 60% em todos os critérios — mesmo que se tivesse 100% em quatro, bastava ter 59% num deles para a entidade em questão ser considerada não elegível, algo que veio também a acontecer com outras estruturas como o Teatro Experimental do Porto ou a Casa Conveniente, de Mónica Calle, todos eles excluídos por nota menos positiva no critério de projeto de gestão.

Day for Night ©Joana Dilão

“A não elegibilidade é uma coisa completamente diferente do que ficarmos classificados em trigésimo e só haver dinheiro para financiar vinte. És avaliado, o teu projeto é considerado, mas o dinheiro não chega e acabas por não receber. Ser não elegível pressupõe que o projcto não reúne as condições necessárias e não é interessante, tecnicamente o ‘não elegível’ é qualquer coisa que se devia pôr à cabeça, que te diziam logo e que dentro do âmbito do concurso não tem encaixe. Nós fizemos o processo todo de reclamações possível e a resposta foi sempre a mesma: que a decisão do júri não era revogável”, diz Paula.

Hoje, continuam a não entender bem o motivo pelo qual o projeto de gestão do Cão Solteiro foi assim considerado:

“Assim levando para um lado mais anedótico, sempre achei que, no ano anterior tivemos um financiamento de 30 mil euros, que estava provado que sabíamos gerir, mas enfim. Estava mais ou menos descansada na imagem que tinham das nossas gestões”.

E o pior é que “a frustração só aumenta”, uma vez que essa essa regra já caiu, já não será assim no próximo concurso. “O que quer dizer que nós, como tínhamos uma boa classificação, não só teríamos sido considerados como até tínhamos subido consideravelmente de financiamento”.

Por outro lado, nem tudo é mau: “Devo dizer que houve uma abertura porque a seguir à mudança destas regras, nem há um mês, a senhora ministra da Cultura conversou com as companhias que estão nesta situação e foi-nos proposta uma solução para o ano de 2019, através do Fundo de Fomento. E isso foi bom para nós, claro”.

Como já tínhamos avisado, o Cão continua Solteiro e com vontade de ladrar. E à pergunta “mas não lhe apetecia agora não concorrer ao próximo concurso para a DGartes?” Paula Sá Nogueira responde assim: “Não, porque acho que temos direito a financiamento, orgulho-me bastante do trabalho que temos feito e acho que isto cria um problema: quando estás a funcionar há 21 anos está visto que ninguém vai desistir, definimo-nos também através do exercício da profissão. Seria má profissional noutra coisa qualquer, porque não teria o tempo suficiente para desenvolver competências e para pensar. Na prática é: dão-te uma paulada na nuca e não morres. Vais continuar a funcionar, porque é assim que existes, mas não tens as bases que são de direito de toda a gente que trabalha, pagar a água, a luz, comer e já não estou a falar de tudo o resto que isto precisa. Continuas a trabalhar, mas não tens um ordenado, ficas numa espécie de limbo onde tudo é muito difícil. Uma coisa é ter menos dinheiro e cortar um ordenado, nem que seja a metade, outra coisa é zero para a vida. Vamos ver o que acontece”.