“Estou capaz de mandar o parlamento abaixo e mandá-lo todo ao rio com uma escavadora.”

Esta é, provavelmente, a citação (cujo autor identificaremos mais à frente) que espelha de forma mais fidedigna o caos em que a política britânica se tornou esta quarta-feira, outro dia tido como decisivo no longo processo do Brexit e no qual, no final de contas, nada mudou a não ser a gravidade da situação.

Esta quarta-feira, o processo do Brexit ficou marcado por dois acontecimentos que alguns, por desespero, querem mandar ao Tamisa.

O primeiro foi a discussão de oito moções alternativas ao acordo de Theresa May, nenhuma das quais, quando chegou a altura de ser submetida a votos, reuniu a aprovação da maioria da Câmara dos Comuns.

O segundo decorreu a portas fechadas, entre deputados conservadores, aos quais a primeira-ministra, Theresa May, prometeu que se demitia caso estes a ajudassem a aprovar o acordo que tão estrondosamente chumbaram em janeiro e fevereiro. A certa altura do dia, ainda se vislumbrou uma saída por esta via — mas, como veremos nas próximas linhas, nada podia ser tão fácil quanto isso.

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Um acordo, um acordo! O meu reino por um acordo!

Quem contou bem isto tudo foi William Shakespeare, na peça Ricardo III. Ali, é ficcionada uma batalha em que Ricardo III já matou cinco Richmonds, isto é, cinco aliados do seu adversário, o rei Henrique VII, tudo isto a cavalo. Problema: ainda há um sexto Richmond à solta. Problema ainda maior: o cavalo de Ricardo III foi morto algures e ele agora segue a pé, procurando chegar ao seu animal. Nesta altura, um dos seus homens mais próximos William Catesby, diz-lhe que se retire e oferece-lhe um cavalo para bater em retirada. Ricardo III não aceita e insiste em procurar o cavalo, porque só nele montado sente capacidades para defrontar os Richmonds. E é aí que ele grita: “Um cavalo, um cavalo! O meu reino por um cavalo!”.

Sete séculos depois, chegou a vez de Theresa May repetir este número na Câmara dos Comuns, tomando o seu acordo como o único cavalo capaz de lhe valer. A meio da discussão das várias moções alternativas ao acordo de Theresa May, a bancada do Partido Conservador esvaziou-se de forma surpreendente. De repente, contavam-se pouco mais de 10 deputados no lado esquerdo da sala, quando ali chegam a estar 317 em dias cheios. Foi só depois que se soube que estavam reunidos com Theresa May, que os convocou para um reunião que não constava na sua agenda oficial.

A proposta de May atraiu vários eurocéticos, mas não os suficientes para mudar o jogo

Ali dentro, pelos relatos que de lá surgiram, só terá faltado a Theresa May dizer claramente: “Um acordo, um acordo! O meu reino por um acordo!”. Jogando aquela que pode ser uma das suas últimas cartadas, a primeira-ministra tornou a insistir junto dos seus deputados mais eurocéticos que apoiassem o seu acordo para o Brexit — e garantindo que, em troca, se demitiria.

Foi um discurso emotivo, disseram alguns dos presentes. Theresa May terá inclusive segurado as lágrimas. “Sei que há uma ânsia por uma nova abordagem — e uma nova liderança — numa segunda fase das negociações do Brexit. E não vou ser eu que me vou impedi-lo”, disse. E reforçou:

“Sei que algumas pessoas estão preocupadas que, se votarem a favor do acordo de saída, eu assumirei que tenho um mandato para entrar rapidamente numa segunda fase sem o debate de que necessitamos. Não é o que vou fazer”.

Ao prometer a própria demissão, Theresa May conseguiu atrair a aprovação de alguns dos seus principais adversários internos, todos membros do European Research Group, que junta os deputados eurocéticos do Partido Conservador.

Boris Johnson admitiu esta quarta-feira aprovar acordo de May que em tempos disse ser um “colete de bombas amarrado à Constituição” — tudo porque a primeira-ministra ofereceu a demissão em troca

Um deles foi Jacob Rees-Mogg, que disse que apoiaria o acordo de Theresa May em troca da sua demissão caso o DUP (unionistas da Irlanda do Norte que apoiam o governo minoritário conservador) também o fizesse. Também Boris Johnson, ex-ministro dos Negócios Estrangeiros de Theresa May que bateu com a porta por discordar do rumo que o Brexit levava, garantiu que agora apoiaria este acordo — acordo esse que, em setembro de 2018, disse ser “um colete de bombas enrolado na Constituição britânica”.

Ao todo, de acordo com as contas da editora de política da BBC, Laura Kuenssberg, foram pelo menos 25 os conservadores eurocéticos que decidiram mudar de ideias agora que tinham nas mãos a possibilidade de Theresa May se demitir e abrir alas a um novo governo conservador. Porém, estima-se que aquele grupo tenha mais mais de 60 membros. Por isso, faltaria ainda convencer quase dois terços deles — e houve que demonstrou ser particularmente indefetível.

É aqui que chegamos à citação de abertura deste texto e ao seu autor: Steve Baker, vice-líder daquele grupo, que estava perplexo com a facilidade com que alguns dos seus colegas mudaram de ideias quanto ao acordo de Theresa May assim que esta acenou com a cenoura da sua demissão. “Estou consumido por uma raiva feroz depois daquela intrujice”, disse sobre a promessa de Theresa May de se demitir em troca da aprovação do seu acordo. E concretizou: “Estou capaz de mandar isto abaixo e mandar tudo ao rio com uma escavadora.”

Mas não foi preciso tanto. Tudo isto porque, enquanto os conservadores eurocéticos se reuniam à porta fechada (mas com inúmeros relatos daquele encontro a saírem em tempo real para a imprensa), os unionistas do DUP tomavam uma decisão fulcral: se o acordo de Theresa May voltar a ser votado, o voto deles é “não”.

Tudo isto complica as contas de Theresa May e, mais uma vez, vota a sua solução ao fracasso. Aqui, nada de novo. Já dentro da sala principal da Câmara dos Comuns houve novidades — mas que, como já veremos, não levam a nada de novo.

Na hora de pegar na bola, só um deputado mandou ao poste

A equipa tenta, mas não pode. É muito disto que se houve nos melhores relatos radiofónicos do futebol distrital, repletos de equipas em que os jogadores visualizam as jogadas, sabem bem por onde ir e como fazê-lo, chegam a ver a bola a entrar no cantinho da baliza… mas depois não podem.

Foi também isso que aconteceu esta quarta-feira na Câmara dos Comuns, com os chamados backbenchers — deputados sem cargo de liderança — a tomarem nas suas mãos os destinos do Brexit, assumindo de forma inédita os trabalhos da Câmara dos Comuns, que é tarefa tradicionalmente da responsabilidade do Governo.

Tudo isto levou a que fossem propostas 16 moções, cada uma com um caminho para o Brexit alternativo ao que Theresa May forjou com Bruxelas. Dessas, oito foram aprovadas pelo speaker da Câmara dos Comuns, John Bercow, o homem mundialmente conhecido pelos seus gritos por “ordem!”. Entre estas opções, contavam-se soluções para todos os gostos: uma saída sem qualquer acordo; um Brexit mediante o estabelecimento de uma união aduaneira; copiar o modelo da Noruega e a sua relação com a UE; convocar um referendo para validar qualquer efetivação do Brexit, seja qual for o caminho proposto; revogar totalmente o cenário de uma saída sem acordo; entre outros.

John Bercow, sarcástico, admitiu que não estava “completamente em choque” por não ter havido consenso em nenhuma das oito moções dos deputados

O debate começou às 14h30, primeiro para definir os termos do próprio debate. Às 15h30, começou o tal debate, com as opções a serem apresentadas uma a uma. Às 19h00, já depois de salas ao lado Theresa May ter proposto o seu reino por um acordo e o conservador Steve Baker ter admitido o seu desejo de mandar a Câmara dos Comuns para os confins rio Tamisa, começou a votação. E às 21h40, por fim foram anunciadas as votações.

Os resultados foram anunciados um por um na voz rouca de John Bercow. Moção B, 160 a favor e 400 contra. Moção D, 188 a favor, 283 contra. E por aí em diante, tudo goleadas, sempre a culminar na derrota de cada menção. Tudo menos uma, a Moção J, que propunha a criação de uma união aduaneira. “264 a favor…”, disse o speaker, número esse que levou a urros de antecipação por parte de alguns deputados. Era como se estivessem num jogo de futebol em que a bola vai ao poste e anda ali a saltitar em torno da linha de golo. Será que entra? “… 272 contra”, completou o speaker.

No final de contas, John Bercow admitiu perante os parlamentares, em resposta à intervenção de uma deputada trabalhista: “Se a senhora deputada me pergunta se eu estou completamente em choque por não ter havido um acordo hoje, confesso que de facto não estou completamente em choque por não ter havido um acordo depois de um dia de debate. Mas isso é uma posição factual”. É mesmo assim: a equipa tenta, mas não pode.

E agora?

Não é certo. O caminho ficou em aberto para que, de acordo com a ordem dos trabalhos aprovada pelos deputados o início da tarde, as oito moções voltassem a ser discutidas. Entre estas, parece haver especial vontade entre parlamentares para discutir precisamente a Moção J, por ter sido a que esteve mais perto de ser aprovada — e certamente mais perto do que qualquer dos acordos levados à Câmara dos Comuns pelo Governo de Theresa May.

Porém, admitiu John Bercow, nada disso será necessário se, até lá, a primeira-ministra conseguir aprovar na Câmara dos Comuns o seu acordo. Essa votação pode vir a acontecer já na sexta-feira, de acordo com vários relatos na imprensa britânica, que apontam para um novo pedido do Governo nesse sentido.

Mas nem isso é garantido — nada é, no fundo, na saga do Brexit. Primeiro, porque não é certo que o speaker autorize a votação — tanto que já a negou anteriormente, alegando que o Governo em nada alterou a sua proposta desde que esta foi rejeitada em fevereiro. Depois, porque Theresa May continua a não ter apoio suficiente para um acordo.

Enquanto isso, o calendário avança — e, quanto a ele, verdade seja dita, os deputados chegaram a acordo. Baseando-se em duas datas anteriormente acordadas com Bruxelas, os deputados aprovaram a alteração oficial do instrumento legal britânico que define as datas previstas para a saída do Reino Unido da UE. Pelo menos para já, é certo e garantido que o Brexit sem acordo está marcado para 12 de abril e para 22 de maio na eventualidade de haver um entendimento. Faltam, por isso, entre 16 dias a 56 dias.