Na História do Cristianismo, a diferença é óbvia: desde que o Império Romano do Ocidente se vai paulatinamente desagregando e as ideias cristãs se inseminam pelos reinos bárbaros que há grandes construções cristãs. Há abadias famosas, mosteiros ligados a Cister e a Cluny, mas a própria construção já diz muito sobre a espiritualidade. Os monges, na maioria ligados à regra de São Bento ou, mais tarde, de São Bernardo, são trabalhadores do campo, mais herdeiros da tradição anacoreta do que prosélitos do quotidiano e retirados do mundo. A civilização ainda é vista como uma ameaça ao Homem Cristão, pelo que o monge se refugia dela.
As grandes conversões bárbaras são, quase todas, a partir de cima. Primeiro converte-se Clóvis e a partir daí Clóvis ordena a conversão dos seus súbditos; mesmo a entrada de S. Bernardo no mosteiro é feita com todos os seus cavaleiros. Isto é, a Europa anterior ao ano mil já pode ser considerada Cristã, mas de uma maneira curial – o Cristianismo ainda não penetrou nas vidas das pessoas, como mostra, em Portugal, a famosa carta de S. Martinho de Dume, De Correctione Rusticorum, que trata dos hábitos pagãos das populações Ibéricas do século VI. A organização administrativa já é Cristã, os reis são Cristãos, mas o tempo de verdadeira entrada do Cristianismo nas populações Europeias é o tempo das Catedrais.
Tudo nas Catedrais o demonstra: não são lugares de retiro, são o centro da cidade; são o reconhecimento de que a Civilização já é Cristã e de que toda a vida está conformada ao espírito; os vitrais de trabalho, tão comuns nas catedrais do século XIII, são o reconhecimento de que a vida Cristã já não é exclusivamente a renúncia da vida mundana – a Igreja conseguiu transformar a vida quotidiana em vida Cristã.
Neste sentido, a catedral não é importante apenas enquanto símbolo Cristão; é importante enquanto símbolo maior do espírito que vai orientar a Europa durante séculos.
O roteiro das Catedrais é longo e grandioso. Canterbury, Salisbury, Winchester ou, em França, Tours, Chartres, todo o mapa da Europa está cheio de exemplos magníficos do grande símbolo medieval. No entanto, Notre Dame é a antonomásia das Catedrais. Em primeiro lugar porque, estando o espírito da Catedral ligado à ideia medieval de Cidade, a verdade é que Paris é a grande cidade Cristã da Idade Média. É certo que há Roma, mas Roma é mais símbolo de um tempo que houve e de um tempo que há de vir do que Paris. Roma é a cidade Tridentina, da reacção à Reforma e, antes, do grande Império Romano em que o próprio Jesus viveu; mas o esplendor do espírito medieval pertence a Paris. A grande boémia goliarda é feita pelos estudantes da Universidade, da mesma Universidade em que São Tomás ressuscita a filosofia Aristotélica e onde se dão as grandes controvérsias intelectuais entre as ordens mendicantes; além disso, se Roma tem o Papa, Paris tem uma monarquia que é o mais perfeito exemplo do espírito político medieval.
Como bem explica Auguste Comte no seu ensaio sobre o poder temporal e o poder temporal, a Idade Média leva muito mais a sério do que é habitualmente reconhecido a questão da separação de poderes. A ideia de que há um poder temporal e um poder espiritual, de que Deus não se deve meter nos negócios de César, é muito cara ao espírito medieval, embora seja interpretada de um modo que hoje nos é estranho. De facto, hoje em dia chamamos o poder de Deus ao poder privado – cada um pode ter a fé que quiser, desde que não interfira com os outros – e o poder de César ao poder público; para o espírito medieval, no entanto, ambos os poderes são públicos. Simplesmente, a monarquia não tem poder para decidir o que é o Bem e o Mal, não é fonte de moral nem de justiça, prerrogativa reservada à Igreja. O Rei é o braço de Cristo, e nenhuma monarquia tem neste aspecto uma tradição tão clara e tão difícil quanto a francesa.
Roma, neste aspecto, não pode encarnar o espírito medieval tão bem quanto a França porque o Papa tem, embora separadamente, os dois poderes; a monarquia Francesa, tantas vezes a mais poderosa da Europa, tem este gesto quase milagroso e anti-histórico. A presença da Catedral no coração de Paris, com o seu direito de asilo e a inviolabilidade das suas portas, é um gesto magnânimo da Monarquia Francesa; quantos, dos grandes monumentos da História do Mundo são feitos, não em louvor do soberano, mas de um corpo que, por muito boas relações que tenha com o monarca, em última análise obedece a um estrangeiro? É certo que este equilíbrio é frágil, e que a Igreja Galicana é, posteriormente, uma tentativa de subordinar o clero; mas nunca como no Tempo das Catedrais uma empresa é tão imprudente e ao mesmo tempo tão clara nos direitos dos seus cidadãos. A Catedral, e Notre Dame em particular, é a prova física e flagrante de que há um poder, o poder do Bem e do Mal, que o Rei não controla. Este é um dos grandes pilares da Civilização Europeia e, provavelmente, o mais difícil de construir. Que tenha havido, na história do mundo, um continente em que os Reis decidiram abdicar voluntariamente do seu poder, dentro das suas próprias casas, é uma das coroas de glória da humanidade e um aspecto que merece ser celebrado com toda a grandeza de Notre Dame.
A importância de Notre Dame não se esgota, porém, nem no espírito em que foi construída, nem no tempo em que melhor expressou a mundividência reinante. Toda a história de França é marcada por esta grande Catedral nas margens do Sena. Se a Revolução Francesa excitou a iconoclastia, o Romantismo recuperou o encanto pela catedral de Paris. O romance de Vitor Hugo não é importante apenas pela história do arcediago Claudio Frollo, na sua relação doentia com Quasimodo e com a cigana; Vitor Hugo recupera o amor pelos claustros, pelas gárgulas e pelo mistério gótico que continuará moda por todo o romantismo, mas fá-lo de uma maneira muito mais profunda. Claudio Frollo não é apenas um apaixonado pela cigana ou pela sabedoria; é um Homem bom, que sofre com a desordem das suas paixões e que perde tudo aquilo que lhe é querido em nome de um desejo que ele próprio detesta; que o enredo deste drama se dê nos claustros de Notre Dame não é inocente; Vitor Hugo sabe que, melhor do que qualquer outra coisa, a Catedral Medieval expressa a ordenação das paixões para o sublime. Toda a estética medieval, como se pode ver na famosa obra de De Bruyne, radica na ideia de que as paixões confundem a mente e a impedem de ver aquilo que o Homem procura. Que Vitor Hugo, passado o encanto com o estado de Natureza, recupere a Catedral como cenário do grande drama humano que é o Homem desejar o que não quer, apenas demonstra de que forma a Catedral é, ainda, a melhor ilustração dos grandes conflitos do Homem.
O que a Literatura francesa deve a Notre Dame é incontável. Foi em Notre Dame que Claudel, numa noite de Natal, se converteu, e foi como trabalhador na construção de uma catedral que o mesmo Claudel criou uma das personagens principais do seu Anunciação a Maria. A Catedral aparece, aí, como a construção do povo, o fim terreno a que tantos dedicam as suas vidas, que se transforma num fim espiritual. A Catedral é, mais uma vez, o lugar dos simples, com os seus vitrais narrativos para as gentes que não sabem ler. Esta fé cativou também Huysmans, que de bardo da decadência se tornou também ele devoto da Catedral. No seu A Catedral, é a linha gótica que é responsável pela conversão de um ateu empedernido; a forma, pela sua beleza, torna-se a matéria concreta do coração.
A grandeza de Notre Dame é incomunicável. A coroação de Napoleão mostrou a pequenez do tirano e a grandeza da Catedral, com o corso a querer para si a grandeza do lugar. Mesmo hoje, num tempo de turismo e em que a cultura é desprezada na sua pretensão de verdade mas não nas suas idiossincrasias, a Catedral continua a ser admirada. Paris tem no seu centro este símbolo da sua vocação. Nem a França laica e enfraquecida consegue apagar do seu centro este monumento, que a cada dia tem um novo rosto na História de França, mas que é sempre a maior, a mais óbvia, a mais bela e a mais certeira pedra da Civilização do Ocidente.