Quando a 22 de abril de 1969 foi anunciado, em Londres, o primeiro vencedor do Booker Prize, o prémio literário hoje reconhecido como um dos mais importantes de língua inglesa era muito diferente. A cerimónia foi simples — uma pequena receção com bebidas no Stationer’s Hall — e o cheque oferecido ao escritor inglês P.H. Newby era de apenas 5 mil libras. Newby, então com 50 anos, era um escritor de sucesso, com mais de uma dezena de livros no mercado e boas críticas. O prémio em si teve um impacto modesto, mas fez com que o seu livro, Something to Answer For, chegasse à lista de bestsellers do Evening Standard. Foi a primeira vez que um romance britânico apareceu na lista apenas por ter ganho um prémio literário.

Com o passar dos anos, o Booker Prize foi-se assumindo como um dos mais importantes galardões de literatura de língua inglesa, ao mesmo tempo que o seu primeiro vencedor, P.H. Newby, ia perdendo a popularidade que teve em tempos. Com a sua morte, em 1997, o seu nome foi definitivamente atirado para o esquecimento. Passados 50 anos de ter recebido o primeiro Booker, Newby, outrora aclamado como um dos melhores escritores ingleses do pós-Segunda Guerra Mundial, é conhecido de poucos — são raros aqueles que o conhecem e ainda mais difíceis de encontrar aqueles que o leram. “Já leu alguns dos seus livros? Já ouviu falar dele além de ter sido o primeiro vencedor do Booker?”, questionou Sam Jordison num artigo publicado no The Guardian em 2007. Provavelmente não.

A dificuldade em encontrar as suas obras nas livrarias tem contribuído — e muito — para isso. O único romance que tem sido regularmente reeditado nos últimos dez anos é Something to Answer For. No ano passado, saiu uma edição comemorativa (reproduzindo a capa original) da atribuição do Booker pela Farber & Farber, a editora inglesa que o publicou em 1968. Em Portugal, não é possível encontrar nas livrarias uma única edição em português de algum dos mais de 20 livros que Newby publicou em vida. Será que o primeiro vencedor do prémio literário inglês está mesmo condenado a ser esquecido?

O prémio literário que foi criado por uma empresa de açúcar e rum

O Booker Prize, que galardoou P.H. Newby em 1969, começou por ser organizado pela associação de editores britânicos, depois de ter sido criado em 1968 pela Booker MacConnell Ltd., uma empresa que comercializava açúcar, rum e maquinaria usada na exploração mineira. Ficou desde logo estabelecido que o galardão, no valor de 5 mil libras, seria atribuído anualmente a um escritor nascido no Reino Unido, Commonwealth, República da Irlanda e África do Sul, uma regra que só foi alterada em 2014, quando o Booker passou estar a acessível a qualquer escritor de língua inglesa com obra publicada no Reino Unido (e, consequentemente, aos escritores norte-americanos, que ganharam as duas últimas edições). Foi só muito mais tarde, quando a administração foi transferida para a Booker Prize Foundation e o seu financiador passou a ser o Man Group, é que o prémio passou a ser conhecido como o Man Booker Prize.

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A criação do Booker foi, para a associação de editores, a concretização de um sonho. Há muito que a Publisher Association andava à procura de alguém que financiasse um prémio literário de língua inglesa, semelhante ao que já existia noutros países, como em França, onde havia o Goncourt desde 1903. O objetivo era encorajar e premiar os escritores, mas ninguém escondia que era também uma oportunidade de negócio — maior publicidade significava um aumento no número de vendas de livros, ainda que, naquele tempo, os prémios literários tivessem pouco impacto nas vendas. Foi isso mesmo que o The Guardian apontou, num artigo publicado depois do anúncio da criação do Booker em 1968.

Artigo do jornal The Guardian sobre a criação do Booker Prize

A escolha do primeiro vencedor do Booker Prize coube a um painel de cinco jurados, presididos pelo editor literário do The Guardian, W.L. Webb. Em declarações ao jornal, Webb descreveu o prémio como “um sinal notável de que o Reino Unido também” estava “a aprender a dar mais valor aos escritores e ao seu trabalho”. Os restantes jurados eram David Farrer, Frank Kermode, Stephen Spender e Dame Rebecca West. A decisão foi tomada um mês antes do anúncio, em março de 1969, depois de terem sido selecionados seis finalistas (como acontece ainda hoje): Something to Asnwer For, de P.H. Newby, Figures in a Landscape, de Barry England, Impossible Object, de Nicholas Mosley, The Vive and the Good, de Iris Murdoch, The Public Image, de Muriel Stark, e From Scenes like These, de G.M. Williams.

P.H. Newby foi o grande vencedor, mas o telefonema que recebeu da associação de editores teve um gosto agridoce. Depois de ter sido informado que tinha sido escolhido pelo júri do Booker, recebeu um novo telefonema informá-lo que afinal não tinha sido ele a ganhar — os envelopes tinham-se misturado e o vencedor era outro. Só mais tarde é que se confirmou que o autor de Something to Answer For era, de facto, o primeiro a receber o Booker Prize, formalmente atribuído no dia 22 de abril, em Londres. Questionado pelo The Guardian sobre o que iria fazer com o dinheiro, Newby disse que talvez construísse um novo escritório. Ainda não tinha pensado muito bem sobre isso.

Reedição de 2018 da Farber & Farber que reproduz a capa original de Something to Answer For, de 1968

Em consequência da atribuição do prémio, as vendas de Something to Answer For, publicado pela Farber & Farber, dispararam. Não que o escritor precisasse de aumentar as vendas dos seus livros — naquela altura, Newby, um escritor bem conhecido do público, vendia entre oito a nove mil exemplares de cada obra, “muito mais do que a maioria dos escritores”, apontou então o The Guardian. Ainda assim, o seu maior pesadelo era que só fosse lido por velhinhas. Se isso chegou a acontecer, foi só muito tempo depois, já depois da sua morte em 1997, quando o seu nome caiu incompreensivelmente no esquecimento.

Depois da primeira edição do Booker Prize, a administração passou da Publisher Association para a National Book League (mais tarde Book Trust). No ano seguinte, o prémio foi atribuído ao romance The Elected Member, da galesa Bernice Rubens.

P.H. Newby, o autor que todos esqueceram

Percy Howard Newby nasceu a 25 de junho de 1918 Crowborough, em Sussex, no sul de Inglaterra, na antiga casa de Arthur Conan Doyle, o criador de Sherlock Holmes, que naquela altura estava a ser usada como berçário. Estudou numa escola em Worcestershire e depois na faculdade em Cheltenham. Terminou o curso em 1939, quando foi enviado para França para servir junto das forças britânicas na Segunda Guerra Mundial. A sua unidade foi das últimas a ser evacuadas do território francês, em 1940. Nos primeiros meses de 1941, passou pelo Egito com as forças do Médio Oriente, levando sempre consigo uma cópia de Eothen, de Alexander Kinglake.

Em 1942, foi dispensado do exército para se tornar professor de literatura inglesa na universidade Fouad I, na cidade do Cairo. Ocupou o cargo até 1946, quando regressou a Inglaterra. Um ano antes disso, publicou, aos 27 anos, o seu romance de estreia, A Journey to the Interior, o primeiro de muitos com o Médio Oriente como pano de fundo. Este valeu-lhe, no ano seguinte, um Atlantic Award. Foi também em 1945, que casou com Joan Thompson, filha de um padeiro, tal como ele. O conto “The Baker’s Daughter” (“A Filha do Padeiro”) fala do longo cabelo comprido que Joan tinha quando o conheceu.

P.H. Newby no seu escritório

Dois anos depois de A Journey to the Interior, numa altura em que tinha começado a escrever artigos e críticas para a revista semanal The Listener, Newby publicou Agents and Witnesses. Em 1949, começou a trabalhar para a BBC. Durante os 30 anos que passou na estação televisiva, ocupou diversos cargos, começando com o de produtor e terminando com o de diretor-geral. Apesar de trabalhar em Londres, o romancista tinha o hábito de se refugiar na sua casa em Garsington, em Oxfordshire, durante os fins de semanas para se dedicar à escrita. No obituário do escritor publicado no The Independent, Anthony Thwaite, poeta e amigo de P.H. Newby, lembrou que o escritor foi um dos poucos capaz de conjugar um emprego exigente como diretor com uma “prolífica produção de trabalho criativo”.

Em 1948, ano em que recebeu publicou o Somerset Maugham Prize, publicou Mariner Dances. As obras seguintes — The Snow Pasture (1949), The Young May Moon (1950) e A Season in England (1951) — deixaram as paisagens orientais para trás, focando-se antes na província inglesa ou galesa. P.H. Newby voltou ao Egito com o seu 17.º romance, Something to Answer For, que conta a história de Townrow, que se vê obrigado a viajar até ao país dos faraós depois da morte de um amigo, Elie Khoury, cuja mulher acredita que foi assassinado. Em entrevista ao The Guardian por altura da atribuição do Booker Prize em 1969, o escritor admitiu que o Oriente lhe tinha causado “uma impressão determinante”. Numa conversa com o mesmo jornal, criticou abertamente o estado da literatura, que considerava que tinha de disputar a atenção com o cinema e a televisão. Para Newby, o romancista tinha-se tornado um entertainer entre muitos outros, quando antigamente, na época vitoriana, era nele que todos, sem exceção, buscavam uma forma de alimentar a sua imaginação.

O ritmo acelerado de produção manteve-se até ao final da vida de Newby. Além de romances, publicou ensaios, livros de história e duas biografias, de Maria Edgeworth (1950) e de Saladino (1983). Kith, de 1977, é considerado por muitos a sua melhor obra. Este centra-se em Faulkes, um médico que, ao chegar ao Suez em 1941, é recebido por um fantasma ligado à história da sua família. O livro, quase uma comédia, evoca, segundo o site dedicado à obra do autor, todo o mistério e esplendor do Egito dos anos 40, que Newby conhecia tão bem.

Entrevista de Terry Coleman a P.H. Newby para o The Guardian pouco depois de o escritor ter ganho o Booker Prize

Graham Greene descreveu-o como “mais divertido e mais triste do que todos os outros” romances. Foi também Greene que, talvez antecipando o esquecimento em que o autor cairia, disse que Newby era “um bom escritor que nunca recebeu o reconhecimento que merecia”. O crítico inglês Walter Allen, um dos seus defensores mais ferrenhos, considerava-o verdadeiramente original, com um trabalho que se assemelhava mais à vida real do que o de “quase todos os romancistas vivos”. Para Anthony West, P.H. Newby era, sem sombra de dúvidas, “o mais talentoso escritor inglês a aparecer desde o início da Segunda Guerra Mundial” e o único “com qualquer coisa semelhante a génio” naquela geração.

Então, porque é que ninguém lê os seus livros, ninguém o conhece para além da ligação ao Booker Prize? Em 2007, tentando compreender o esquecimento em que caiu este “titã literário e cultural”, Sam Jordison apontava que que era difícil encontrar os seus livros no mercado editorial inglês (curiosamente, Something to Asnwer For foi reeditado pela Farber & Farber no ano seguinte) mas que isso, na sua opinião, não chegava para explicar tudo. “A única conclusão firme a que consegui chegar foi a de que este livro foi vítima dos caprichos do destino”, admitiu. “A verdade é que gostei muito de o ler. Está muitíssimo bem escrito, injetado com uma inteligência mordaz e nítida, e Newby constrói uma narrativa com habilidade consumada, de forma a despistar e a intrigar, deixando os leitores agarrados e a à procura de um significado.”

Anthony Thwaite, que era seu amigo, acreditava que havia muito mais nele: “P.H. Newby é um dos melhores romancistas ingleses da segunda metade do século XX”. Só falta que os leitores, no Reino Unido e não só, fiquem a saber isso.