Mo Farah e Haile Gebrselassie são dois dos mais bem sucedidos maratonistas das últimas duas décadas. O primeiro, britânico, conquistou a medalha de ouro olímpica tanto nos 5 mil metros como nos 10 mil metros nas duas últimas edições dos Jogos, em 2012 e 2016; o segundo, etíope, foi duas vezes campeão olímpico nos 10 mil metros (Atlanta 1996 e Sydney 2000) e quatro vezes campeão do mundo na mesma distância nos anos 90. A amizade entre Farah e Gebrselassie, separados por dez anos nos documentos de identificação mas com dezenas de títulos em comum, era algo quase inevitável. Amizade essa que terá terminado na manhã desta quarta-feira, com um dos capítulos de uma autêntica novela que se arrasta desde final de março mas que só agora chegou ao domínio público.

Mo Farah, que com 36 anos vai voltar às provas de estrada este fim de semana depois de em 2017 ter anunciado que não o voltaria a fazer, aproveitou precisamente uma conferência de imprensa de antevisão da maratona de Londres para contar o primeiro episódio da já longa disputa entre os dois antigos amigos. Depois de desviar as perguntas sobre o treino, Farah explicou que ia falar sobre “um pequeno problema num hotel na Etiópia”. O atleta britânico revelou então que enquanto estava no Yaya Africa Athletics Village, um hotel que pertence a Haile Gebrselassie, alguém entrou no quarto e roubou 2.600 libras em quatro moedas diferentes, um relógio que tinha sido uma prenda da mulher e ainda dois telemóveis, acrescentando que tudo aconteceu no final de março, por altura do seu aniversário.

O britânico foi campeão olímpico nos 5 mil e nos 10 mil metros tanto em Londres 2012 como no Rio 2016

“O assalto aconteceu no dia do meu aniversário, quando saí muito cedo de manhã para uma corrida. Saí às 5h30 com o meu treinador e os meus colegas de treino e entreguei a minha chave na receção para poderem limpar. Quando voltei, por volta das 16h30, reparei que tinha deixado a minha mala aberta. Só depois é que percebi que a tinha deixado trancada e que alguém a arrombou. Alguém tirou a chave da receção, abriu o quarto, tirou o meu dinheiro, tirou o meu relógio que a minha mulher me ofereceu e dois telemóveis. O relógio tinha valor sentimental, não pode ser substituído”, explicou Mo Farah, que no final da conferência de imprensa mostrou várias mensagens enviadas a Haile Gebrselassie a pedir ajuda e a contar o episódio – apelos a que, segundo o britânico, o etíope nunca respondeu. Face à ausência de respostas por parte de Gebrselassie, Farah decidiu ameaçar que tornaria público o incidente. Novamente sem respostas, foi isso que fez.

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“Quero informar-te de que estou muito desiludido com o facto de não teres feito nada para encontrar o meu dinheiro e especialmente o meu relógio. Tentei contactar-te por telemóvel várias vezes. Fica a saber que não sou responsável pelo que vou dizer na conferência de imprensa em Londres e pela influência que vai ter na tua pessoa e nos teus negócios. Cumprimentos, sir Mo”, podia ler-se numa das mensagens que Farah mostrou aos jornalistas e a que o The Guardian teve acesso. Haile Gebrselassie nunca respondeu a Mo Farah – mas respondeu quase de imediato às alegações do britânico na conferência de imprensa.

O etíope retirou-se definitivamente em 2015 e além de ter um hotel e uma cadeia de cafés é ainda o presidente da Federação Etíope de Atletismo

Em comunicado, Gebrselassie acusou Farah e a respetiva comitiva de “vários casos de conduta indevida” durante a estadia no hotel de Addis Ababa, a capital da Etiópia. O ex-atleta e dono do hotel garantiu que o britânico não pagou a conta de 3 mil libras e que foi feita uma queixa à polícia local que dizia respeito a uma agressão de Mo Farah a um casal no ginásio da unidade hoteleira. Já esta quinta-feira, o The Guardian publicou uma entrevista com Gebrselassie onde o etíope alegou que foi ele, com um “papel de mediação”, a evitar a prisão de Farah depois de este ter “agredido com socos e pontapés um casal” perante “muitas testemunhas”. “Eu falei com a polícia e disse: ‘Ele é o Mo Farah, é um grande atleta, um nome internacional. A polícia disse: ‘Haile, porque é que estás a dizer isso? Ele é um criminoso’. E eu disse: ‘Por favor, por favor, por favor’. Ele escapou sem ser acusado. Saiu da Etiópia sem sequer ser interrogado. E no final até pediu desculpa: ‘Estava muito zangado, blá blá blá’. Sempre tomei conta dele de várias formas. Mas ele tratou-nos mal”, disse Gebrselassie ao jornal inglês, acrescentando ainda que cinco funcionários do hotel estiveram detidos durante três semanas sob suspeitas do roubo mas acabaram por ser considerados inocentes.

Em resposta ao comunicado do etíope, um porta-voz de Mo Farah limitou-se a sublinhar que o hotel assumiu a responsabilidade pelo assalto e até se disponibilizou para repor a quantia em causa – algo que o britânico recusou. O atleta rejeitou ainda as acusações de agressão feitas por Haile Gebrselassie, que é o atual presidente da Federação Etíope de Atletismo, e explicou que só agiu em legítima defesa, já que um dos elementos do casal ameaçou um dos colegas de treino de Farah. Tudo somado, uma espécie de diz que disse sem fim à vista que só tem como meta final garantida o fim de uma amizade olímpica.