[artigo originalmente publicado a 7 de maio de 2019 e atualizado a 6 de julho de 2020]

As mãos dançaram cada vez mais livremente à medida que o concerto avançou e a batuta foi atrás dele, ou ele é que voou com ela. Assim aconteceu quando se escutava “The Ecstasy of Gold”, composição que Ennio Morricone criou para o filme de 1966 “O Bom, o Mau e o Vilão”, de Sergio Leone, desta vez na voz da soprano Susanna Rigacci. Foi um dos momentos altos do concerto de despedida que levou milhares de pessoas na noite de segunda-feira à Altice Arena, no Parque das Nações, em Lisboa. O célebre maestro e compositor italiano, conhecido por bandas sonoras que pertencem ao imaginário coletivo, fez-se eternamente jovem em palco e o público deu-se conta.

No fim, à saída da sala, a espectadora Maria Augusta Paução, de 66 anos, conhecedora de muitos dos filmes para os quais Morricone compôs, disse ter assistido a um concerto “extraordinário e fabuloso”. “Nunca o tinha visto ao vivo, encheu-me completamente as medidas”. Cecília Soares, de 51 anos, classificou o espetáculo como “muito bom” e a amiga Maria Manuel, de 55 anos, mostrou-se espantada com a presença vigorosa do maestro. “Até fomos à internet ver qual era realmente a idade dele. Tem 90 anos. É um bom exemplo de que uma pessoa rejuvenesce quando ama mesmo aquilo que faz”, afirmou.

A noite trazia o pitoresco de ser este o último concerto de Morricone em Portugal e talvez por isso a casa estivesse quase esgotada. O músico anda desde 2016 a percorrer dezenas de países em despedida, com a digressão “60 Years of Music” a finalizar daqui a menos de dois meses, a 29 de junho, na Toscana. Os primeiros acordes soaram pouco depois das 21h00 e a música prosseguiu por três horas, com intervalo ao fim dos primeiros 60 minutos. A acústica da Altice Arena, tantas vezes criticada por ser pouco fiel, pareceu servir como uma luva nas paisagens sonoros do velho maestro.

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Frágil a andar, mas com olhar de falcão sobre a partitura, Morricone apresentou-se de fato, camisola, sapatos pretos e óculos de massa ao estilo anos 50. Sentou-se de costas para o público, frente a uma orquestra e a um coro de quase 200 elementos. A cada tema, ou conjunto de temas, o público oferecia-lhe uma ovação e ele levantava-se de uma cadeira de escritório, em cima de um palanque que lhe dava perspetiva sobre os músicos. A mão esquerda ficava agarrada a um corrimão dourado que tinha em seu redor e a mão direita ia ao peito para deixar um agradecimento saído do coração.

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O fundo do palco variou entre o azul e o vermelho, com luz branca sobre os músicos e o coro, numa encenação reduzida ao mínimo. Em dois ecrãs gigantes laterais surgiram imagens aumentados dos intérpretes e do maestro, mas as câmaras nem sempre os apanharam no momento em que entregavam a performance. Também nos ecrãs, viam-se legendas com os títulos dos temas e dos respetivos filmes e séries, o que terá tornado o concerto mais legível.

Foram tocados “The Man With the Harmonica”, “The Fortress”, “Os Oito Odiados” (tema-título do filme de Quentin Tarantino que em 2016 valeu a Morricone o Óscar de Melhor Banda Sonora), “La Luz Prodigiosa”, “A Batalha de Argel”, “The Working Class Goes To Heaven”, “Afirma Pereira”, “Sacco e Vanzetti”, “Gabriel’s Oboe” e tantos outros. Morricone ia tirando as partituras de uma prateleira por baixo do tampo da mesa que tinha à frente – cadernos com argolas, alguns já muito manuseados.

“Ao início, pareceu-me um pouco parado, mas depois, em certas músicas, achei-o bastante enérgico”, analisou mais tarde David Romão, de 37 anos, à saída do recinto. “Há muito tempo que queria ver o maestro ao vivo e fiquei satisfeito com o concerto. Sou admirador do trabalho dele, sempre gostei muito das bandas sonoras”, referiu, notando, ainda assim, que o alinhamento não foi inteiramente ao encontro do que esperava. “Apenas uma questão de preferências pessoais”, resumiu.

Se a primeira parte ficou marcada pela aparição de Susanna Rigacci, de vestido rubro e energia épica, a segunda parte teve motivo suplementar de interesse com Dulce Pontes, que surgiu descalça, com vestido negro de manga curta e gola alta dourada. O público recebeu-a com enorme salva de palmas e entusiasmou-se ainda mais com a interpretação que a cantora portuguesa deu a “Abolição”, do filme “Queimada!”, que Gillo Pontecorvo realizou em 1968.

Com dois temas do filme “A Missão”, de Roland Joffé, Morricone deu por terminado o concerto, mas voltou perante uma ovação de estrela pop que o público tinha reservado para ele. Depois de um bis, saiu novamente e voltou a entrar em palco. Seguiu-se a repetição de “The Ecstasy of Gold”, com Susanna Rigacci, e ainda “La Luz Prodigiosa” e “Abolição”, com Dulce Pontes. Chegava ao fim o espetáculo da sagração.