Armando Vara não queria ir ao parlamento, mas acabou por falar até se desunhar — e só por uma vez (quase) perdeu a compostura. Ao longo de mais de cinco horas e meia, o ex-administrador da Caixa Geral de Depósitos e do BCP, repetiu várias vezes “não quero, não posso, não devo” falar sobre um dos negócios mais polémicos em que esteve envolvido no banco público, Vale do Lobo.

Mas insistir foi uma estratégia acertada para vários deputados, porque Vara acabou por não “resistir”, várias vezes, a contar a sua versão do que aconteceu numa operação que hoje está sob investigação judicial mas que, na altura, “parecia ser um negócio excelente” para a Caixa.

Acabou por “correr mal” mas, ao contrário de “outros”, aqueles que dizem que “só iam aos conselhos para fazer número”, Armando Vara diz que “assume as suas responsabilidades” e lamenta, dizendo que quando olha para trás, para negócios como Vale do Lobo, tem um sentimento de “dor”. Mas, se voltasse atrás, com a informação que tinha na altura, diz que não faria diferente.

Saindo, por algumas horas, do “martírio” que é estar preso em Évora — uma “condição” que, disse, só acontece porque “apagaram conversas para que eu não me pudesse defender até à medula” — Armando Vara justificou aquilo que aconteceu na Caixa, principalmente, com uma crise internacional cujo impacto ninguém previu. Mas reconheceu que houve “erros”, embora sejam erros que “têm de ser analisados à luz do contexto da altura” e que têm de ser comparados com aquilo que aconteceu na restante banca portuguesa e europeia. Ainda que tenha admitido que quando soube de casos de malparado na Caixa, anos mais tarde, ficou “constrangido”.

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O que não muda no discurso do antigo gestor da Caixa, em relação à primeira comissão de inquérito em 2017, é a defesa entusiasmada de Vale do Lobo, uma operação elogiada e do agrado geral de toda a administração do banco.  Vara chegou, mesmo, a sugerir que, “no limite, a Caixa até terá recuperado o dinheiro que meteu no Vale do Lobo”, com aquilo que foi recebido em reembolsos antes de o empréstimo azedar e com os mais de 200 milhões de euros a que Vale do Lobo acabaria por ser vendido ao fundo de capital de risco de António Sousa (um ex-presidente da Caixa). O que Vara esqueceu de esclarecer é que, como apontou a deputada Mariana Mortágua, do Bloco de Esquerda, para vender o ativo tóxico ao fundo a Caixa teve de comprar unidades de participação (um investimento que teve de ser provisionado — “para a Caixa Vale do Lobo é só perdas, só perdas”).

Uma operação, que segundo o antigo administrador animou todo o banco — desde a área do crédito até ao marketing, e onde os deputados tinham um trunfo. O diretor da área sul da CGD, que segundo o testemunho de Vara em 2017, tinha sido o responsável a receber o proposta de Vale do Lobo, desmentiu esta versão. Alexandre Santos disse que foi Vara a enviar-lhe o business plan do projeto, o que não era uma situação comum.

“Sempre que eu recebia coisas de alguém, eu reenviava”, comentou, admitindo que há uma “certa confusão” na sua memória sobre quem é que sugeriu, originalmente, o investimento — Vara diz não saber quem é que “nasceu primeiro, se foi o ovo ou a galinha”. “É muito fácil 12 ou 13 anos depois acharmos que aquilo era um disparate. Mas na altura não era assim”, afirmou. Vale do Lobo correu mal? Sim, “mas também houve muita coisa que correu bem”, disse Vara, lembrando os dividendos que a Caixa sempre pagou ao Estado, mais de mil milhões de euros naqueles anos — o mesmo raciocínio que foi usado por Carlos Santos Ferreira, ex-presidente da Caixa.

Risco dava pareceres contrários? “Manda quem pode”

Armando Vara garantiu que a direção de risco nunca deu pareceres negativos, de forma “irredutível”, contra a concessão deste ou daquele crédito — algo que não corresponde àquilo que é dito na auditoria da EY que deu origem a esta comissão de inquérito. Apenas foram dados “pareceres condicionados”, mas que foram contrariados porque, “nestas coisas, manda quem pode”, ou seja, manda a administração, afirmou em resposta a Cecília Meireles do CDS. E a administração achou que seria importante para o banco público entrar naquele negócio — e entrar sozinho (e não no âmbito de um investimento sindicado, em conjunto com outros bancos, como estava registado em ata mas acabou por não acontecer).

Com a audição a Filipe Pinhal muito presente, Armando Vara diz que o antigo gestor do BCP se terá enganado na data em que diz ter ouvido falar do seu nome e o de Santos Ferreira para a administração do banco privado. E fez questão de dizer:

“Não concordo com tese quase paranoica, inventada pelo setor a que pertence Filipe Pinhal e que acha que somos responsáveis por tudo o que aconteceu no banco. O BCP esteve sujeito a uma guerra interna que o poderia ter destruído e à qual a Caixa foi completamente alheia”.

Vara diz que foi ele próprio quem decidiu, a certa altura, que a Caixa tinha de reduzir a participação acionista no BCP, na altura da liderança de Paulo Teixeira Pinto, mas que este lhe pediu para manter pelo menos 1% porque seria uma defesa contra ofertas hostis. Mas quando o confrontaram com o facto de que o banco emprestou muito dinheiro garantido por ações do BCP, assegurou que na Caixa não havia consciência disso.Era só “o negócio pelo negócio”.

A Caixa tinha de participar em operações como esta para ter lucros para poder ter um balcão na ilha do Pico e em todo os concelhos, mesmo naqueles balcões que tinham prejuízo. Só agora mais recentemente é que deixou de ter esses balcões”.

O gestor afirmou ainda que ficou muito orgulhoso com o convite para ir para administração do BCP, embora reconheça que não o teria aceite se soubesse o que veio a acontecer.

“Nunca imaginei que a seguir pudesse haver uma operação que tentou desacreditar e criar condições para que não tivéssemos sucesso”. E muita comunicação social, “que também tinha interesses nesta área”, participou na “golpada”. “A história irá julgar-nos”, afiança. Armando Vara rejeita que algum dia tenha havido um grande plano que tinha como intenção última controlar a comunicação. “A comunicação social participou na criação de uma tese de golpe contra o Estado de direito”. É uma “tese absurda mas é um absurdo que levou a que eu hoje esteja na cadeia”.

“Não pude defender-me até à medula como era meu direito, porque apagaram conversas que impediram que eu me defendesse”.

As perguntas que são uma acusação, a defesa de Constâncio

Apesar de ter respondido a quase tudo, Armando Vara acabou por se indignar, ou ser mais “veemente” segundo a versão do próprio, quando as perguntas se aproximaram mais dos temas tabu da Operação Marquês. Foi o que aconteceu quando Mariana Mortágua lhe perguntou de forma direta:

Alguma vez transferiu algum montante por conta de algum cliente a quem tenha aprovado um crédito na Caixa?

Isso é o centro da comissão de inquérito? Isso é o centro do processo de uma acusação que me é feita. Era a última coisa que esperava era vir ao Parlamento, sede da democracia. Há perguntas que só por serem feitas lançam acusações graves. Quando os interesses de uma certa justiça condicionam o Parlamento alguma coisa vai mal na justiça. Não esperaria que seria a Sra deputada pela força que representa que fizesse eco de coisas que considero calúnias”.

A isto Mariana Mortágua, contrapõe que Armando Vara pode simplesmente responder não. Mais tarde, já fase final, Vara garantiu que não foi intenção sua ofender a deputada, a quem não atiraria nem com uma flor.

Já nas respostas finais, e sem responder a nenhuma pergunta feita nesse sentido pelos deputados, Armando Vara saiu ainda em defesa do ex-governador, Vítor Constâncio, também ele antigo dirigente do PS, a propósito da suposta aprovação dada pelo Banco de Portugal ao crédito de 350 milhões de euros concedidos a Berardo para aumentar a participação no BCP.

Seria impensável para a banca, disse, que o Banco de Portugal fizesse alguma observação sobre a autonomia dos bancos para conceder créditos. O Banco de Portugal só tinha de dizer sim ou não à pergunta que lhe foi feita. E que não era sobre o empréstimo da Caixa, mas sim sobre se Berardo poderia aumentar a participação no BCP. “Ninguém me encomendou” a defesa do antigo governador neste tema, mas Armando Vara deixa a sua avaliação.” É possível apontar muitas coisas a Vítor Constâncio. Não é possível apontar nada nessa matéria”.

A visita de João Soares e o apelo de quem conhece o sistema (prisional) do ponto de vista do utilizador

Numa audição em que a política pouco contou, Virgílio Macedo, deputado do PSD, comentou que nada que Vara dissesse “nos pode fazer crer que a passagem da Caixa para o BCP não teve contexto político”. Virgílio Macedo recorda uma frase de Armando Vara que se referiu a José Sócrates como “o chefe” — “o senhor era um dos rostos de um assalto ao BCP, para favorecer negócios de amigos, em que o controlo da CGD e do BCP também estava incluído”.

Virgílio Macedo diz que Vara era um “emissário político” do PS e que isso é uma certeza na cabeça dos portugueses. A resposta de Vara: “dr. deputado, o que é que eu hei de dizer para o convencer? ainda bem que falou nos portugueses — lembra-se do resultado das eleições, não lembra?”. Esta será uma referência à vitória do PS em 2009 — Vara dá a entender que se houvesse uma avaliação negativa por parte dos “portugueses”, o PS teria perdido as eleições. Se não perdeu, então…

O passado de Armando Vara ligado ao PS, partido que abandonou antes de ir para a cadeia, esteve bem presente nesta audição — desde logo pela visita que teve de João Soares durante um intervalo nos trabalhos. Mas logo no início da audição, quando entrou diretamente por uma porta que dá acesso direto à mesa onde se sentaria acompanhado pelo deputado Jorge Gomes, um deputado que, recorde-se, também tem participado nesta comissão de inquérito.

A audição terminou com o antigo gestor a fazer um alerta para a situação do detidos em Portugal, sobre a qual já tinha falado na sua intervenção inicial, a propósito de não ter acesso a um computador.

“Enche-se a boca com a necessidade reinserção, mas o que vemos não é reinserção nenhuma. Hoje, por más e não boas razões, conheço o sistema do ponto de vista do utilizador, e isso é dramático. Não é digno de um país como o nosso”.