Um quadro pintado por Delacroix entre 1833 e 1834, hoje propriedade de uma colecionadora francesa cuja identidade não é conhecida, será revelado em público pela primeira vez nesta quinta-feira ao fim da tarde, em Paris, no que pode ser descrito como um momento histórico. “Femmes d’Alger”, assim se chama a pintura, é já considerada uma peça fundamental para se entender uma outra obra célebre do mestre francês, “Femmes d’Alger Dans Leur Appartement“, de 1834, pertencente ao Museu do Louvre, em Paris.

Trata-se de um óleo sobre tela com 46 por 38,5 centímetros, onde se representa uma cena doméstica com duas figuras femininas. A obra estará exposta até 10 de julho na Galeria Mendes, fundada há 12 anos em Paris pelo “marchand” luso-francês Philippe Esteves Mendes. É ele o intermediário da venda e foi ele quem promoveu o estudo da pintura. A mostra é acompanhada por um catálogo de quase 100 páginas com ensaios dos historiadores da arte Virginie Cauchi-Fatiga (especialista em Delacroix) e Nicolas Schaub, da professora de literatura Maryse Violin-Savalle e do crítico de arte Maurice Arama. Todos atestam a autoria e a datação agora atribuídas.

Mas não será necessário esperar por um comprador. A tela já tem destino. Foi entretanto adquirida por um museu público dos EUA, disse o galerista ao Observador, prometendo revelar dentro de poucos dias o nome da instituição, quando o contrato estiver assinado. Ao telefone a partir de Paris, na quarta-feira à noite, Philippe Mendes contou que há cerca de um ano e meio recebeu um contacto da atual proprietária, através de um amigo comum, e que esta se mostrou interessada em vender a tela.

“Até à nossa descoberta, sabia-se que existiam três “Femmes d’Alger”, todos diferentes entre si. Um é de 1834 e está no Louvre, é o mais importante de todos; outro foi pintado uns 15 anos depois e pertence ao Museu de Montpellier; e outro ainda, pintado mais tarde, está no Museu de Rouen. Pensava-se que o quadro de Montpellier tinha pertencido ao conde De Mornay, mas agora percebemos que não”, explicou Philippe Mendes. “No verso do nosso quadro está o número 118, o que indica precisamente que esteve no leilão da coleção De Mornay em 1850. Ou seja, a nossa descoberta traz uma nova leitura sobre o quadro do Louvre e traz elementos novos sobre a história destas três pinturas.”

Desde que viu o quadro pela primeira vez até agora, Philippe Mendes e os especialistas que participaram no estudo guardaram máximo segredo, até terem certeza absoluta de que se tratava de um original de Delacroix.

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“Tive de imediato a sensação de estar perante algo importante, mas pedi para analisar”, recordou. “Não houve restauro, mas fizemos uma limpeza, a obra está em perfeito estado de conservação. Depois da limpeza, as cores sobressaíram e ficou ainda mais clara aquela típica maneira de pintar, que é apenas de Delacroix. Fizemos radiografias, refletografias, análises químicas. E descobrimos que por baixo do nosso quadro está um outro, documentado por um desenho que entretanto encontrámos. Foi um trabalho exaustivo.”

“Femmes d’Alger”, de 1833, antecipa o famoso “Femmes d’Alger Dans Leur Appartement”, de 1834, que está no Louvre

“O preço é de alguns milhões”

Mestre do romantismo francês, Eugène Delacroix (1798-1863) é considerado um dos maiores nomes da pintura mundial, sendo conhecido pela obra “La Liberté Guidant le Peuple”, de 1830, no centro da qual surge uma figura feminina seminua, com a bandeira tricolor francesa na mão direita e uma arma de fogo na mão esquerda. “Femmes d’Alger Dans Leur Appartement”, de 1834, será a sua segunda obra mais famosa, “com a qual se inicia a modernidade na pintura”, classificou Philippe Mendes, que também estudou história da arte na Escola do Louvre e nos Museus do Vaticano. Os especialistas dizem que Delacroix influenciou vários artistas contemporâneos, como Matisse, Picasso ou Marc Chagall, motivo pelo qual é por vezes descrito como um dos pais da arte moderna.

Amigo do diplomata francês Charles-Edgar de Mornay (1803-1878), Delacroix acompanhou-o numa viagem oficial a Marrocos em 1832 e terá ficado tão fascinado com a vida magrebina que ao longo dos anos seguintes realizou 72 pinturas a partir desse tema.

Quatro grande instituições museológicas internacionais mostraram interesse em comprar “Femmes d’Alger”, segundo o galerista, mas nenhuma delas situada em França, “por falta de capacidade financeira”. Sem revelar o preço da obra, lembrou que um esboço de “La Liberté Guidant le Peuple” foi vendido em 2017 pela leiloeira Christie’s por mais de 3,5 milhões de euros. “O nosso é um quadro acabado, apesar de o descrevermos como trabalho preparatório para a pintura que está no Louvre. O preço é de alguns milhões.”

O valor do seguro é também astronómico, disse Philippe Mendes, adiantando que enquanto durar a exposição o quadro terá de sair da galeria todas as noites para ser guardado num cofre situado em Paris, como medida de segurança. A galeria situa-se no número 36 da Rua de Penthiévre, no centro da capital francesa. A abertura da exposição, nesta quinta-feira, decorre entre as 18h00 e as 22h00, enquanto nos restantes dias o horário será das 11h00 às 19h00.

O facto de a tela ser vendida em galeria e não em leilão, explicou o mesmo responsável, deve-se a uma opção da proprietária. “O dono de uma obra destas quer que ela seja admirada e apreciada com tempo e por isso prefere uma galeria, porque sabe que há uma atenção maior à peça, há estudo, catálogo, etc. Num leilão, não haveria este trabalho de investigação que nós fizemos”, argumentou.

Philippe Esteves Mendes trabalha sobretudo no mercado da arte antiga e tornou-se conhecido dos portugueses há cerca de três anos, quando comprou uma pintura de Josefa de Óbidos por 239 mil euros e a ofereceu ao Museu do Louvre. Nasceu há 42 anos em Paris, filho de portugueses do Minho, estudou direito e história da arte e chegou a integrar o departamento científico do Museu do Louvre. A rara descoberta que agora anunciou “vai trazer a atenção do mundo inteiro” sobre o seu trabalho, admitiu, porque “estamos a falar de um dos quadros mais importantes da pintura francesa do século XIX”.