Não me lembro exatamente como acabei a jantar com Mark Sandman num restaurante do Bairro Alto, em 1997, quando os Morphine vieram tocar ao Coliseu. Mas aconteceu. Éramos muitos, entre músicos, gente da produção e amigos (alguns arrastados por mim…) e cada grupo acabou por desenvolver a sua dinâmica de conversa, ditada pela proximidade na mesa serpenteante. No meu caso, sentada perto de Mark Sandman, o assunto principal foram as pataniscas de bacalhau, que eu pedi com o tradicional arroz de feijão, e que ele dizia serem habitualmente comidas com mel, ao pequeno almoço, em Boston e arredores.
Cada vez que penso em pataniscas de bacalhau doces (e desde então, acontece, embora ainda não tenha experimentado, tal como tenho evitado o pastel de nata de bacalhau…) lembro-me de Mark Sandman e como considerava a patanisca uma espécie de panqueca, não vendo qualquer aberração em ensopá-la em mel, mesmo com bacalhau. Na altura, lembro-me de ter pensado que um tipo tocava baixo só com duas cordas com um slide de guitarra podia muito bem achar normal a ideia de pataniscas com mel… fazia parte da sua cena iconoclasta.
Mark Sandman era incrivelmente curioso e informado. Tinha sido taxista para ganhar dinheiro rápido e, enquanto tal, tinha desenvolvido uma ginástica de conversação bastante invulgar e muito veloz. Queria saber dos hábitos alimentares dos portugueses, História, Descobrimentos, movimentos migratórios. Falava com voz grave e suave (a mesma voz de barítono dos discos…) quase sempre em inglês-americano, mas também em português-brasileiro, como tinha aprendido com a namorada.
[“Honey White”:]
Dizia conhecer bem a comunidade portuguesa em Boston (daí as pataniscas), perguntava pela vida em Lisboa e as diferenças para o resto do país. Estava interessado no que tinha mudado depois da revolução. Sim, Mark Sandman sabia que, em Portugal, tinha havido uma ditadura que tinha terminado com uma revolução não violenta nos 70, e não tinha apanhado essa informação numa consulta rápida da Wikipedia no telemóvel (era 1997, mal havia telemóveis, menos ainda wi-fi, ou sequer Google).
Obviamente, aos vinte e poucos anos, faltava-me bagagem para acompanhar toda a conversa do homem de Morphine — e ele não estava muito interessado em falar de música, um assunto em que eu podia estar à vontade sem me sentir ignorante da história do meu próprio país (não, eu não sabia quando tinha sido introduzida a batata na alimentação portuguesa, embora soubesse que era uma planta decorativa antes de ser usada na alimentação…). Mas descobrimos que éramos ambos Dickheads (fãs de Philip K. Dick) e isso acabou por selar uma pequena amizade à distância que nunca se desenvolveu muito porque os acasos, os oceanos e a vida se metem pelo meio. Mark Sandman fez muitos amigos em Portugal, eu tive o privilégio de ser uma das pessoas que passou tempo com ele para lá dos discos e dos palcos. Era realmente especial.
Da mesma maneira que não sei bem como aconteceu o jantar com Mark Sandman em 1997, também não sei explicar como faltei ao concerto de Morphine, em 1999, na Praça Sony. Eles tocaram várias vezes em Portugal, acho que fui a todos os concertos em Lisboa. O primeiro foi em 1995, na primeira edição do SBSR, foi aí que o conheci, porque meteu conversa com várias pessoas nos bastidores e assinou alguns bilhetes (depois entrevistei-o várias vezes). Quando soube da sua morte, dias depois do concerto a que não fui, além do naturais choque e tristeza, senti culpa por ter falhado o encontro com um amigo. As tragédias chegam sem pré-aviso.
[“All Wrong”:]
Mark Sandman morreu a 3 de julho de 1999, vítima de ataque cardíaco fulminante, num concerto em Palestrina, Itália. Tinha 46 anos e era uma das grandes figuras do rock alternativo dos anos 90, muito embora fosse difícil encaixá-lo nos estereótipos a isso associados. Sandman era mais velho, culto e experiente do que as estrelas grunge que na altura concentravam a atenção mediática (o assunto “idade” não era confortável para ele), não cumpria todos os requisitos de estilo da época, nem no visual, nem na atitude, nem nas referências. Além disso, dava-se ao trabalho de fazer os seus próprios instrumentos. Era frontman dos Morphine, mas antes tinha feito parte de várias bandas (entre eles os Treat Her Right), tinha um estúdio de gravação e uma editora (Hi-n-Dry), fazia fotografia, pintava e fazia BD (a mais famosa é Twinemen, daria origem à banda que sucedeu aos Morphine após a morte de Sandman). A sua criatividade era proporcional à sua capacidade de conversação e nunca parecia satisfeita.
Porque Mark Sandman gostava de criar instrumentos, sobretudo de misturar cordas de baixo e guitarra e fazer afinações invulgares (o que deu origem a coisas como a “tri-tar” e o “guitbass”), os Morphine tinham um som diferente, desde logo porque eram um trio sem guitarras mas com saxofone (às vezes dois, tocados em simultâneo). Sandman dizia que faziam “low rock”, um pouco como piada por ele tocar baixo, ter voz de barítono e o saxofone de Dana Colley ser também barítono, mas a verdade é que soavam como mais ninguém. Não tinham nada a ver com grunge, e bandas como Nirvana, pouco também em comum com a cena rock mais experimental da altura, que podemos personificar nos Tortoise, por exemplo. Tocavam em festivais de rock, mas também eram convidados para Montreux. Habitavam um território incerto, que lhes permitia ser únicos.
A diferença foi marcada a partir do primeiro momento, com Good, o álbum de estreia (1992) e cristalizou-se em Cure for Pain (1993). Ambos os discos chegaram a Portugal mais ou menos na mesma altura (1994) e tiveram efeito imediato. Os Morphine transformam-se rapidamente numa das bandas mais tocadas na recém criada XFM (onde eu trabalhava), o que explica, de resto, a vinda ao primeiro SBSR, organizado por Luís Montez, o diretor da rádio. Yes tinha então acabado de sair mas, no público que assistia, já havia quem cantasse o refrão de “Honey White”, embora fossem “Cure For Pain” e “All Wrong” a provocar maior comoção. É justo dizer que o efeito narcótico dos Morphine em Portugal foi epidémico, ou um caso de amor recíproco, já que a banda sempre assumiu ter carinho especial pelo nosso país.
[“Cure for Pain”:]
Os Morphine eram, nos anos 90, e continuam a ser hoje, uma banda “fora da caixa”, que fazia blues rock com influências de jazz, tinha groove minimal de efeito hipnótico e cantava histórias irónicas de má vida, desencanto e desencontros. Os cinco álbuns que deixaram (há que acrescentar Like Swimming e The Night aos já citados), mostram até que ponto a sua natureza era especial e exploratória e como Mark Sandman, além de músico que gostava de desafiar-se e desafiar os outros, era um espantoso escritor de canções. O seu legado, ainda que desviado do centro onde habitualmente estão focadas as luzes, continua a brilhar intenso e a propagar influência pelas margens. Mesmo pensando no que poderia ainda ter feito se continuasse vivo, é certo que a obra de Mark Sandman é uma das obras mais significativas e originais do rock americano da última década do século XX. Deixou saudade e continua a deixar marca.
Isilda Sanches é jornalista e animadora de rádio na Antena 3