[artigo originalmente publicado a 1 de setembro de 2019, atualizado a propósito da morte de John le Carré, a 13 de dezembro de 2020]

“O Espião que Saiu do Frio”

De Martin Ritt (1965)

O Espião que Saiu do Frio não foi o primeiro romance de John Le Carré, foi o terceiro. Mas foi esse livro e o filme dele tirado que catapultaram John le Carré para a fama e o proveito. “O Espião que Saiu do Frio”, de Martin Ritt, é um filme a preto e branco, o único, aliás, de todas as adaptações cinematográficas de le Carré (a fotografia é de Oswald Morris e merece menção). Pode dizer-se, com mais propriedade, que é um filme #a cinzento”, de um realizador vindo da televisão, muitas vezes paquidérmico, sempre com ambições de grandeza literária ou “social”. Neste caso, o universo nevoento e ambivalente de John le Carré ficou bem entregue aos dois protagonistas, Richard Burton e Claire Bloom, em duas das suas melhores interpretações no cinema. Co-ajudou-os Oskar Werner, também num dos seus melhores papéis.

Morreu o escritor John le Carré, o “gigante incontestável da literatura britânica”

George Smiley, protagonista da mais famosa trilogia de John le Carré, cujo último capítulo se intitula Smiley’s People (A Gente de Smiley, de 1979, que teve uma primeira edição em Portugal faz agora dez anos), aparece marginalmente, interpretado por Rupert Davies, o ator que, para meu gosto, antes e depois de Alec Guinness, esteve mais próximo  dos livros (uns anos antes numa série da BBC, interpretara o Inspector Maigret). Alec Leamas, a personagem principal desta história, é referido de passagem no episódio desta “comédia humana” de le Carré que se seguiu a este: The Looking Glass War (A Guerra dos Espelhos, na versão portuguesa), ainda mais sombrio, mas sem a mesma envergadura nem a mesma perfeição geométrica.

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[O trailer de “O Espião que Saiu do Frio”:]

“Duas Plateias para a Morte”

De Sidney Lumet (1966)

Foi a segunda das inúmeras adaptações cinematográficas, televisivas, teatrais e radiofónicas dos romances de le Carré. É uma das minhas preferidas. Baseia-se no seu primeiro romance: Call for the Dead (Chamada para a Morte ou Chamada para o Morto, consoante as edições portuguesas). A esplêndida fotografia a cores é de Freddie Young. O argumento é assinado por Paul Dehn, autor também do argumento de “O Espião que Saiu do Frio”. É uma adaptação produzida e dirigida pelo americano Sidney Lumet, realizador prolífico e tantas vezes certeiro, como neste caso.

Não há referência no filme ao romance em que se baseia e, embora todos os outros personagens conservem os seus nomes originais, George Smiley, interpretado por James Mason, aparece sob o nome de Charles Dobbs, ao que parece por uma questão de direitos sobre o nome. Mason, não desfazendo, ainda não é o nosso Smiley. Será preciso esperar por Sir Alec. A Londres do tempo em que o livro foi publicado (1961) era ainda uma cidade atreita a uma “neblina espessa e amarela”, que ecoa nos livros de le Carré o nevoeiro da Guerra Fria: um dos últimos capítulos do livro intitula-se, de resto, Echos in the Fog, “Rumores no Nevoeiro”. Londres era também a capital de uma Inglaterra em que no fim das representações teatrais o público se punha de pé para ouvir o hino nacional. Mas já dobrara a finados pelo Império. É neste primeiro romance — ainda nalguns aspetos hesitante e convencional — que George Smiley é apresentado, retratado e biografado de fio a pavio.

[O trailer de “Duas Plateias para a Morte”, em inglês “The Deadly Affair”:]

“A Toupeira” e “Smiley’s People”

De John Irvin (1979) e Simon Langton (1982)

Estas duas séries televisivas vertem para televisão dois dos romances da famosa Trilogia Karla, que narra o duelo entre serviços secretos ingleses e soviéticos — “diferentes hemisférios da noite”, como se escreve já em Call for the Dead — nas pessoas de George Smiley e de Karla. Fica de fora o do meio, o notável The Honourable Schoolboy (O Venerável Espião, numa mais antiga tradução portuguesa, e O Ilustre Colegial, na mais recente), talvez excessivamente intrincado e longo para se prestar a essa transmigração.

[imagens da versão televisiva de “A Toupeira” de 1979:]

As duas séries são de qualidade desigual. “A Toupeira” (Tinker, Tailor, Soldier, Spy, que teve uma nova vida em filme, mais recentemente, pela mão de Tomas Alfredson, em 2011, com Gary Oldman como protagonista) é excelente. Todos os episódios da série são dirigidos por John Irvin, cuja estreia no cinema em Os Cães da Guerra, dois anos antes, fora uma revelação que não teve grande desenvolvimento posterior. “Smiley’s People” é uma versão muito langorosa e “para televisão” de um romance que é também a conclusão frouxa e dececionante da trilogia. Até Alec Guinness tem uma interpretação preguiçosa, mecânica e pouco convincente na pele de Smiley, que encarnara brilhantemente na primeira série. Mas a escolha de Guinness para interpretar o protagonista fora inspirada. Como antes e depois de David Suchet não há outro Poirot, também Alec Guinness “tomou conta” de Smiley — “baixo, gordo e de disposição sossegada”, nas antípodas de James Bond.

[o trailer de “Smiley’s People”:]

Le Carré atinge em muitos pontos desta trilogia a expressão máxima do seu virtuosismo literário e da sua enviesada ambiguidade política. “Não havia triunfo nos olhos de Smiley. Só ansiedade”, disse em Call for the Dead; “– Anime-se. Ganhou! — Ganhei? Suponho que sim”, é o diálogo final e desencantado de A Gente de Smiley. Foi realizada uma versão mais recente para cinema de “A Toupeira”, com Gary Oldman no papel de Smiley. Há quem tenha gostado. Mas não substitui a velha série de televisão — e Oldman está longe de destronar Alec Guinness.

“A Casa da Rússia”, de Fred Schepisi (1990)

Foi há um ano assinalado o trigésimo aniversário da publicação em Portugal deste livro de 1989 (saiu no mesmo ano que a edição inglesa). Este é o segundo romance do autor que tem Lisboa como cenário de algumas peripécias relevantes. Desde “Abril em Portugal”, filme americano dos tempos do Estado Novo, Lisboa já esteve na moda várias vezes. Na série de “A Toupeira”, há cenas importantes numa casa de fados e na “Lisboa antiga”. Neste filme, há bonitas vistas da cidade — sobretudo de Alfama e do rio — e uma embaixada inglesa a fingir, com vista sobre o Tejo.

Estamos no estertor final da União Soviética e a intriga transforma-se numa história de amores mais felizes e menos tortuosos do que os do Espião que Saiu do Frio. Sem Smiley, que só voltaria a aparecer no mais recente A Legacy of Spies (que é uma rememoração dos velhos tempos), tudo acaba por girar à volta do romance entre o editor interpretado por Sean Connery e a russa personificada por Michelle Pfeiffer, no auge da sua beleza. Vê-se sem grande sacrifício graças ao magnífico naipe de atores, aos postais de Lisboa e da Rússia, por mais deslambidos que acabem por ser, e ao consolador happy ending. Love conquers all!

É tudo muito profissionalmente comandado por Fred Schepisi, um publicitário e cineasta australiano que mostrou do que era capaz no ácido “Plenty” (“Plenty, uma história de Mulher”, na versão portuguesa) e logo a seguir nos divertiu com “Roxanne”, uma versão contemporânea do Cyrano de Bergerac escrita e protagonizada por Steve Martin.

[O trailer de “A Casa da Rússia”, com Sean Connery no papel principal:]