Ainda não se avistava a adolescente-quase-adulta Billie Eilish, só música e imagens no ecrã, mas se houvesse um sonómetro na Altice Arena (antigo Pavilhão Atlântico), em Lisboa, às 21h10 desta quarta-feira, tinha disparado logo com os níveis de decibéis da sala: andavam já milhares de pessoas, tudo de pé até nos balcões com lugares sentados, a expurgar o pulmão inteiro, gritos agudos de excitação descontrolada com a chegada iminente da nova menina bonita da música pop americana. Pré-adolescentes e adolescentes, sobretudo, mas também jovens adultos, pais, fãs trintões e quarentões até. Pensa-se por uns segundos que as gargantas têm capacidade finita, que é impossível gritar assim tanto tempo, a resposta é desconcertante: na estreia da cantora e compositora de 17 anos em Portugal, o concerto foi todo assim, quase uma hora e meia de histerismo e devoção gritada que meio mundo anda há meses a tentar explicar.

Há 45 anos, o prestigiado crítico norte-americano Jon Landau (então ao serviço da revista Rolling Stone) deslocou-se a uma sala de concertos em Cambridge, Massachussetts, e nessa noite viu o que depois declarou ser o futuro do rock and roll. Landau tinha ido a um concerto em que a guitarrista, cantora e compositora de blues, Bonnie Raitt, era figura de destaque, mas foi na primeira parte que viu uma estrela em vias de vingar: Bruce Springsteen. O “boss”, como também é conhecido, já tinha dois álbuns no currículo, mas estava longe (bem longe) de ser o fenómeno de massas em que se começaria a tornar no ano seguinte, com a edição do disco Born to Run — e que só cresceria até à loucura da Brucemania dos anos 1980.

Nessa noite de 1974, ainda esta miúda que se apresenta de cabelo verde, riso fácil e roupas largas não era muito provavelmente sequer um plano de futuro, Landau viu o que logo a seguir descreveu deste modo: “Vi o meu passado rock and roll a aparecer-me como um flash. E vi algo mais: vi o futuro do rock and roll e o seu nome é Bruce Springsteen. Numa noite em que precisava de me sentir jovem, fez-me sentir que estava a ouvir música pela primeira vez”. A previsão é sempre arriscada, talvez o seja menos agora que Billie Eilish enche arenas com multidões onde quer que vá, mas quem a viu esta quarta-feira em Lisboa não precisa sequer de ser devoto da sua música para ter sentido uma variação do que Landau sentiu: o futuro da pop pode bem ter-nos passado pelos olhos. E só não passou mais pelos ouvidos porque os gritos ininterruptos dos fãs nem sempre o permitiram.

Billie Eilish no seu concerto de estreia em Portugal, esta quarta-feira, na Altice Arena, em Lisboa (@ Melissa Vieira / Observador)

Um pouco por todo o lado, a internet vai-se debatendo interminavelmente com Billie Eilish. De um lado da barricada estão os fãs que nunca ouviram nada melhor: garantem isso mesmo, nas redes sociais e nas arenas como esta lisboeta, “ela é a maior”, “we fucking love you, you’re the best”. Do outro, estão os detratores que perante tanto recorde — a mais nova a somar tantos sucessos planetários, com milhões de seguidores e fãs, concertos lotados em todo o lado, números astronómicos que deixam certamente feliz a sua carteira e a indústria musical que a pescou a tempo de se alimentar do fenómeno — vão escarnecendo: que isto é música de miúdos e adolescentes histéricos, que não parece mas é produto de marketing feito à medida, que poucos anos faltam para que dê lugar à nova coqueluche da miudice.

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Talvez seja cedo para tecer considerações definitivas sobre Billie Eilish. Por um lado porque a música, que é ou deveria ser o grande critério de avaliação (não o contexto, a história que sobre ela é narrada, o vestuário ou até as posições cívicas e políticas que aqui e ali vai expressando, nas letras e fora delas), resume-se por ora a algumas canções soltas, pequenas coleções de temas e a apenas um álbum completo, When We All Fall Asleep, Where Do We Go?, lançado há apenas uns meses. Por outro, porque parte dos argumentos utilizados para a engrandecer e lhe celebrar a visão artística — o facto de não se rodear de uma horda de produtores que lhe decidem e concebem a música, o facto de compor e produzir os temas apenas com o irmão e artesanalmente — são objetivamente frágeis: na verdade ninguém além de Billie Eilish, o irmão Finneas O’Connell e o seu círculo próximo está em condições de afirmar com certezas que a história que sobre ela é contada não é leve ou até profundamente ficcionada. No limite, retiram-se as certezas e sobra só a crença de que a indústria discográfica com a qual Billie tem uma relação até ver benéfica não é assim tão responsável pela música e persona que cativou tanta gente.

A música de Billie Eilish, no entanto, impôs-se. Olhando para o público que andava pelo interior da Altice Arena esta quarta-feira, é notório que a sua grande base de fãs é maioritariamente (embora não exclusivamente) jovem e que há mesmo muita gente que se identifica com ela — não apenas com o que canta. Quando Billie Eilish diz, quase no final do concerto, que gosta mesmo muito de quem ali está, “I really fucking love you” no seu idioma inglês e travesso, e quando as reações a isso vão do rosto extasiado ao grito eufórico, é percetível a proximidade.

Atualmente com 17 anos, conseguiu um feito que tem sido destacado insistentemente com espanto pela imprensa e indústria musical: conseguiu estar 19 semanas seguidas como a mais ouvida dos EUA (@ Melissa Vieira / Observador)

Tendo crescido, ao contrário de artistas mais velhos, já em pleno mundo digital de redes sociais, nota-se que comunica com fãs sem distanciamento nem reverências, aparentemente — ilusoriamente? — sem intermediários. Quem a vê adora-a, parece invejar-lhe a aparente despreocupação e a traquinice, mais do que subversão. Quase conseguimos ouvir “quem me dera poder usar estas roupas e este cabelo” nos pensamentos de um grupo de adolescentes bem penteadas e arrumadamente vestidas ao nosso lado. Enaltecem-lhe uma espécie de estranha normalidade que a distancia dos modelos inalcancáveis e inatingíveis das celebridades pop, gente que pede mais reverência do que amizade. Numa capa que lhe dedicou, que incluía no interior um extenso perfil, a revista Rolling Stone titulou: “Billie Eilish, o triunfo do estranho [weird]”.

Que a devoção à cantora e compositora não depende exclusivamente da música foi especialmente notório quando os fãs desataram a entoar “Billie” em coro quando esta ainda estava a cantar um tema, esta quarta-feira em Lisboa. A música, no entanto, consegue um equilíbrio pouco habitual entre uma espécie de tristeza-desespero millenial que é percetível em redes sociais como o Twitter e na música que vai vingando cada vez mais na pop, como já notou a revista Pitchfork — excluam-se daqui fenómenos de escape como o reggaeton e a pop mais histriónica (mas até a eletrónica eufórica já teve dias de mais sucesso) — e uma energia e sonoridade festiva que pisca o olho a fenómenos do hip-hop e trap, de que Billie Eilish é fã confessa. Tanto está a cantar, frágil, confissões com que adolescentes e não só se identificam sobre camadas musicais discretas (bastam-lhe batidas fragmentadas e minimais), como está a saltar e a dançar desengonçadamente como um espectador possivelmente também dançaria. Mais impressionante do que isso, consegue por vezes misturar esses dois mundos ao mesmo tempo. E porque não, se na vida também coexistem?

Ao vivo nota-se também que apesar da juventude e da ainda pouca experiência em lidar com multidões, Billie Eilish tem um controlo inesperado sobre os espetáculos e o público, que vai desafiando com pedidos de energia, de saltos e de criação de mosh pits. A dada altura, nesta atuação em Lisboa que foi a penúltima de uma longa digressão (daí agradecimentos também à sua “comitiva”, aos músicos que a acompanham e à família), entre elogios ao público e à energia que sentiu na plateia nesta “noite fantástica”, pediu para que quem a ouvisse desse a mão a uma pessoa do lado e deixou o desejo de que todos estivessem felizes “por estar vivos, a respirar, e por estar aqui”.

O poder vocal não é estrondoso, mas a voz é afinada e bonita. Até sobre o espaço grande em palco que ocupa com apenas um baterista e com o irmão, que toca teclas e guitarra, tem um domínio notório, doseando os momentos em que canta mais estática junto ao microfone, sentada ou deitada (talvez em Lisboa o tenha feito mais do que em concertos antigos, até por estar lesionadasnos dois tornozelos, como confessou durante o espetáculo) com pulos e aproximações ao público.

O visual pouco habitual entre estrelas pop — desde logo pelas roupas largas e confortáveis — é um dos traços característicos de Billie Eilish (@ Melissa Vieira / Observador)

O seu maior êxito, “Bad Guy”, espécie de canção pop irreverente de língua fora mostrada aos mauzões que a plateia também conhece, serviu para abrir e para fechar o concerto (já no encore) em êxtase. Mas se pelo meio registaram-se ainda momentos desiguais — fruto da curta discografia que não tem só canções estimulantes, embora o público tenha reagido a todas com entusiasmo —, há pequenos bombons pelo meio que deixam antever um futuro auspicioso. Houve alguns versos de “my strange addiction” que Billie Eilish conseguiu sussurrar mesmo tornando a canção uma festa. Houve a bela balada que é “idontwannabeyouanymore”, em que mostrou também ao vivo uma candura vulnerável que sabe expressar vocalmente. Houve “COPYCAT”, que ao vivo tem uma mais notória e eficaz aproximação enérgica às batidas do trap, ramificação em voga do hip-hop. Houve “bitches broken hearts”, outro tema anterior ao álbum com uma produção musical diferenciada. E houve “Xanny” e — para encerrar o espetáculo antes do regresso com o encore que teve apenas o hit — “”when the party’s over” e “bury a friend”, trio de alguns dos melhores temas de um álbum de estreia de Billie Eilish que não vem salvar o mundo da música pop nem merece o rótulo de obra-prima, mas que a mantém no radar de uma pop que não soa inefavelmente insonsa.

Billie Eilish não será “a única coisa interessante” que anda por aí entre os artistas que atraem multidões, como já sugeriram, alguns implicitamente, outros mais explicitamente, gente com créditos como Thom Yorke, Jim Jarmusch ou Dave Grohl. Não será sequer a genial agitadora musical e social que de tempos a tempos a indústria musical e quem a avalia procura e proclama, para criar novos génios, mas pode muito bem ser efetivamente o futuro da pop, pelo menos enquanto os (hoje) adolescentes e jovens não se cansarem dela. Por agora, apropriamo-nos de Jon Landau para dizer que o futuro pode mesmo ter-se ouvido na Altice Arena. Por agora, percebe-se pelo menos que a adolescência pode já ter soado melhor mas também já soou bem pior. Não está tudo perdido.