Entra-se pelo número 58 da Rua da Escola Politécnica, como quem vai para o Jardim Botânico, e vira-se na primeira porta à esquerda. O que primeiro se encontra é uma parede com centenas de livros (edições recentes da Imprensa Nacional) e uma escultura do artista visual Bordalo II. Uns passos a seguir, surge a exposição propriamente dita, labirinto de paredes brancas, com vitrines, cartazes informativos, vídeos, máquinas industriais e documentos raros.

“Indústria, Arte e Letras – 250 Anos da Imprensa Nacional” foi inaugurada a 6 de setembro no antigo picadeiro do Colégio dos Nobres, em Lisboa (um edifício de meados do século XVIII, hoje também conhecido como picadeiro do Museu Nacional de História Natural e da Ciência). Prolonga-se até 24 de novembro, com entrada livre, de terça a domingo. É uma das iniciativas que desde o ano passado têm vindo a assinalar o respeitável aniversário da Imprensa Nacional.

Na aparência, até pode ser considerada uma exposição clássica: os objetos estão literalmente expostos e o percurso do visitante segue de módulo em módulo, até ao módulo final. Mas há uma mensagem, ou discurso expositivo, com princípio, meio e fim. A saber: que a atividade da Imprensa Nacional refletiu e criou parte da história contemporânea do país e acompanhou a maneira como a administração do Estado se relacionou com os portugueses – assim resumiu ao Observador a historiadora Inês Queiroz, coordenadora científica da mostra.

Por ordem cronológica, em dez núcleos principais, a exposição começa em 1768, com o início da Impressão Régia, que em 1821 passou a chamar-se Imprensa Nacional; atravessa o fim da monarquia e o início da República; fala da reorganização administrativa e da modernização da maquinaria entre 1945 e 68; culmina nos nossos dias, com o 25 de Abril de 1974, o período democrático e o futuro tecnológico.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Note-se que a Imprensa Nacional-Casa da Moeda é uma sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos e resulta da fusão, em 1972, daquelas duas entidades. É conhecida pela edição eletrónica do “Diário da República”, pela produção de passaportes e cartões de cidadão e ainda pela publicação de autores portugueses consagrados. A Casa da Moeda remontará ao século XIII, por isso, os 250 anos referem-se apenas à Imprensa Nacional, instaurada no reinado de D. José I, por iniciativa do Marquês de Pombal, e ainda hoje a funcionar na mesma zona de Lisboa (agora Príncipe Real, então Cotovia).

A iniciativa do Marquês de Pombal enquadrou-se na “tentativa de reformar tudo o que tinha sido a anterior influência jesuíta no ensino”, numa época de absolutismo, contextualizou Inês Queiroz durante uma visita guiada, há poucos dias. E daí que uma das funções iniciais da instituição tenha sido a de se substituir ao Colégio dos Nobres, fundado por jesuítas.

“Estima-se que houvesse 11 tipografias em Portugal naquela época. A tipografia com caracteres móveis era evidentemente uma invenção de vários séculos antes. O Marquês de Pombal percebeu que assim garantia a edição do que já então se considerava um bem essencial cultural. Havia uma lógica de preservação cultural e da língua portuguesa. Ao mesmo tempo, defendia um pouco a indústria portuguesa, porque os caracteres deixaram de ser importados e passaram a ser fabricados pela própria Impressão Régia”, acrescentou.

Doutorada em história contemporânea e especialista nas áreas de economia, sociedade, património e inovação, Inês Queiroz investigou durante mais de um ano os arquivos da Imprensa Nacional, o que lhe permitiu criar uma narrativa histórica sobre a instituição. Concluiu que “as estratégias ou a ausência de estratégias culturais, em termos de política de língua ou política cultural externa, foi-se refletindo na vida da Imprensa Nacional”, instituição “sempre muito permeável” a decisões de cada regime.

“Não por acaso, quando chegámos ao liberalismo, a Impressão Régia passou a Imprensa Nacional, porque deveria ser propriedade da nação e não do rei. Foi uma mudança simbólica muito importante. À medida que avançamos no tempo, percebemos bem as marcas culturais dos sucessivos regimes políticos, nem que seja pelo tipo de edições que foram feitas.”

Num jornal de 16 páginas que os visitantes podem levantar à entrada da exposição, lê-se, por exemplo, que o período seguinte à implantação da República, em 1910, correspondeu a uma “maior valorização” da Imprensa Nacional, com destaque para o papel do jornalista Luís Deroet, então diretor-geral. Já sobre o período do salazarismo, lê-se que instituição conheceu grandes entraves.

“O regime criou o seu próprio organismo de propaganda, o Secretariado da Propaganda Nacional, e reduziu a Imprensa Nacional a uma repartição”, disse Inês Queiroz. “Fazia alguns livros com relevância cultural, assim considerados pela ‘política de espírito’, mas recuou muito, passou a ser conhecida pela produção de impressos. Aliás, o regime sabia que tinha um núcleo muito forte de oposicionistas entre os tipógrafos desta casa.”

Espaço da exposição tem assinatura do gabinete Aires Mateus e inspira-se nas velhas caixas de tipos

Cartas de jogar no século XIX

O espaço expositivo tem a assinatura do gabinete de arquitetos Aires Mateus. A inspiração foram as caixas de madeira das antigas oficinas tipográficas onde se guardavam os caracteres (letras, números, símbolos), ou seja, as caixas de tipos. Daí o percurso labiríntico, como se o visitante estivesse a contornar as placas de madeira que nessas caixas dividiam os tipos. Destaca-se também a iluminação, com dezenas de lâmpadas que descem do teto.

Uma curiosidade bem documentada surge no início do percurso e dá conta de que a criação da Impressão Régia implicou também uma linha de produção de cartas de jogar, “novamente numa lógica de proteção industrial”, de acordo com a historiadora. O jogo seria um problema social e o Estado quis controlar o contrabando ao chamar a si este tipo de objetos. Até à década de 1820, várias edições de livros foram, aliás, financiadas com as receitas da venda de cartas.

A acompanhar esta recente visita guiada, esteve Gonçalo Caseiro, presidente da INCM, que destacou as parcerias entre a instituição e universidades portuguesas para “incorporar inovação tecnológica” em passaportes e outros documentos de segurança. Também presente, Duarte Azinheira, diretor das edições da Imprensa Nacional, explicou que esta é uma “editora pública” com “um papel diferente do dos editores privados, porque não compete com eles”. A missão da Imprensa Nacional, segundo este responsável, é a de “garantir que textos fundamentais para a cultura portuguesa estão disponíveis nas melhores edições, independentemente de se conseguir ou não recuperar o investimento feito. Essa é, aliás, a razão pela qual existe esta editora pública. Se fosse possível recuperar todo o investimento, o Estado não precisaria de utilizar recursos públicos para editar livros.”

Duarte Azinheira referiu ainda que a Imprensa Nacional publica entre 70 a 90 obras por ano e destacou as “edições críticas de autores portugueses, que visam recuperar tanto quanto possível a verdade dos textos, conforme os autores os escreveram”, além de livros infantojuvenis, um “desafio recente, com cerca de cinco anos”.

A entrada na exposição é gratuita e quem ali se deslocar recebe um bilhete de desconto para compra de livros da Imprensa Nacional, precisamente na loja da editora, do outro lado da Rua da Escola Politécnica.