Na primeira vez que Humberto (Adriano Luz) e Alice (Jani Zhao) surgem no ecrã, o lugar do Polícia, assim com maiúscula, na cidade de Lisboa, ganha um protagonismo como nunca teve — ou, pelo menos, como não tinha há muito tempo. E Lisboa é apresentada como cenário policial com a categoria e a credibilidade que há muito se esperava. As duas coisas juntam-se em “Sul”, a série que se estreia este sábado às 21h na RTP1, criada por Edgar Medina e Guilherme Mendonça e realizada por Ivo M. Ferreira. E há também uma referência a “sul” como uma espécie de lugar imaginado para Humberto encontrar alguma paz. Ele que com Alice fazem uma dupla de inspetores da Polícia Judiciária.
Mas “Sul” tem mais. É um policial com um elenco de luxo: Adriano Luz, Jani Zhao, Afonso Pimentel, Margarida Vila-Nova, Margarida Marinho, Nuno Lopes, Ivo Canelas, Beatriz Batarda e José Raposo. Um pollicial que se passa em Lisboa, despertado pelo aparecimento de uma rapariga morta no Rio Tejo, filha de um empresário da construção civil. É uma Lisboa do final da década passada, com a crise a bater, um tempo que está subentendido, mas que se vê em pormenores de decoração ou em detalhes tão subtis como os passes antigos. Mas mais do que a Lisboa que se vê, é a Lisboa que se imagina, nos interiores e cenários improváveis, dispostos de forma a fazer da cidade também uma personagem. Uma cidade que serve o imaginário dos policiais: com crime, criminosos, polícias desiludidos e beatas em todos o lado.
[o trailer de “Sul”:]
Humberto é o tal polícia desiludido, parado no tempo (há mais décadas do que provavelmente ele sabe) e à espera de um tal “sul” que nem deve existir. Uma fuga para um casamento falhado e uma vida entre cigarros e copos. Adriano Luz é excecional no papel. Mas Adriano Luz é excecional em quase tudo o que faz.
Ao longo de nove episódios de 45 minutos, investiga-se o caso da rapariga desaparecida, que depressa vai dar a outras coisas. Do lado do crime, mas não necessariamente ligado a este caso, está Matilha, interpretado por Afonso Pimentel, que explicou ao Observador numa conversa por telefone que “há uma grande evolução na minha personagem, quando ela se cruza com o Humberto. A partir daí, torna-se o braço direito do polícia desiludido. Uma relação de amizade que não é óbvia, mas que permite levar a história para outros lados. O Humberto irá fazer coisas que, como polícia, não as poderia fazer, mas consegue fazê-las através do Matilha.”
Não é a primeira vez que Afonso Pimentel está do lado dos fora-da-lei. Assim aconteceu em “O Bairro”, como Necas, por isso a pergunta foi inevitável, se gosta desse lado e se algum dia se imagina no papel de polícia:
“Gosto muito de inventar, inventar no sentido de redescobrir, de encontrar formas de fazer o meu trabalho e divertir-me: como é que esta personagem pensaria, como é que reagiria nesta situação. Mesmo quando não tens personagens que não são tão seguras a nível de guião. Já fiz dois fora-da-lei, claro que é mais divertido fazer de gajo que pisa o risco. Mas, por outro lado, também tens personagens como a do Adriano Luz, que estão do lado da lei, mas que é maravilhosa, por causa da sua ânsia de resolver.”
“Sul”, enquanto projeto, começou há algum tempo. Afonso Pimentel refere que dois anos antes de começarem a gravar a série, fizeram um episódio piloto para apresentar às operadoras para garantir financiamento: “Foi uma jogada inteligente. Não foi uma série que nos chegou com episódios fechados. Além disso, a possibilidade de trabalhar numa série escrita pelo Edgar [Medina] e realizada pelo Ivo [M. Ferreira]… pessoas com quem queria trabalhar há algum tempo. São pessoas que admiro pessoal e profissionalmente”.
Afonso Pimentel aparece no primeiro episódio num culto de uma igreja evangelista. Não está lá para ser evangelizado, mas para roubar. Começamos por vê-lo na sessão, na dita “igreja”, onde Ivo Canelas é o pastor, e logo a seguir vemo-lo num escritório, naquilo que parece ser um barracão abandonado. Os dois espaços pertencem ao mesmo sítio e o contraste parece real, o que ajuda também a situar esta Lisboa de “Sul”. É um dos muitos espaços que surgem na série que criam esta Lisboa ficcional para um domínio de policial: “A igreja da série, aquela espécie de IURD, foi filmada num barracão. Mas é um barracão com capacidades cinematográficas inacreditáveis. Tem vista sobre o Rio Tejo, iluminação só de um dos lados… tem uma série de elementos que, cinematograficamente, dá gosto de ver.”
A experiência de realizador de Afonso Pimentel realça a sensibilidade do ator em relação a estes elementos. E entende que Lisboa é mais do que um local em “Sul”. É uma personagem. Insiste-se tanto nisto porque na ficção Lisboa tem por hábito ser cidade-postal ou existir apenas nos seus subúrbios. Em “Sul”, os subúrbios são um outro lado da cidade e a cidade-postal não existe. É uma cidade com a bela decadência que os policiais bem fotografados (e bem musicados, como este, que tem banda sonora dos Dead Combo] conseguem transmitir, com promessa de lugares a sul que provavelmente nunca existirão.