“Flexibilidade” e “cedência”. Foram essas as palavras utilizadas pelo primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, para caracterizar a proposta feita pelo seu Governo aos parceiros europeus para contornar o problema do backstop nas Irlandas — que mantinha a Irlanda do Norte numa união aduaneira e no mercado comum com a União Europeia (UE), a fim de evitar uma fronteira física que separasse as duas Irlandas, como proíbe o Acordo de Paz Sexta-Feira Santa. “Demonstrámos grande flexibilidade”, afirmou o primeiro-ministro perante os deputados. “As nossas propostas representam uma cedência.”

A solução, como já havia sido noticiado pelos jornais, é mista: prevê que a Irlanda do Norte se mantenha na união aduaneira com a UE — mas não no mercado comum — e obriga a que a solução seja votada e aprovada quer pela assembleia regional, quer pelo governo da Irlanda do Norte, e revista a cada quatro anos. “Não haverá necessidade de ter controlos na fronteira ou perto dela na ilha da Irlanda”, garantiu Boris Johnson, que diz estar assim assegurado o incumprimento do Acordo de Paz. “Todos os controlos serão feitos de forma eletrónica ou então nas instalações dos comerciantes ou noutros pontos da cadeia de fornecimento.”

Independentemente da aceitação ou não da UE deste plano — Jean-Claude Juncker diz que está disponível para negociar, mas a Irlanda fala num plano “inaceitável” —, a receção dos deputados ao plano foi variada. Alguns fizeram perguntas sobre possíveis alterações e o primeiro-ministro mostrou-se aberto a ouvir sugestões. Boris Johnson sabe que precisa de uma maioria no Parlamento para aprovar o que quer que seja e, portanto, parece estar disposto a alterar algumas vírgulas no plano, se tal ajudar.

Do lado da oposição, contudo, houve muito ceticismo. Por um lado, porque esses deputados não creem que o projeto vá ser aprovado em Bruxelas, devido à separação entre união aduaneira e mercado comum; por outro, porque, sublinham, continua a haver controlos aduaneiros, embora não diretamente na fronteira. “Este acordo é ainda pior do que aquele que foi proposto pela primeira-ministra anterior”, vaticinou Jeremy Corbyn sobre o acordo de Theresa May, chumbado na Câmara dos Comuns por três vezes.

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O líder da oposição acusou Boris Johnson de estar a fazer um jogo perigoso, apresentando um acordo que sabe que não será aprovado: “Estas propostas não são mais do que uma tentativa cínica do primeiro-ministro de atirar as culpas do seu falhanço para outros“, acusou o líder do Partido Trabalhista.

Como bem sabe, isto vai ser rejeitado em Bruxelas, vai ser rejeitado nesta Câmara e vai ser rejeitado pelo país”, declarou Jeremy Corbyn.

Também Ian Blackford, líder dos nacionalistas escoceses do SNP, reforçou essa ideia: “É um plano para culpar outros, neste caso a UE, quando este plano for rejeitado.” Corbyn e Blackford aproveitaram ainda para acusar o primeiro-ministro de estar a considerar quebrar a lei, ao recusar pedir um adiamento do Brexit (como ordenado pela lei Benn) caso não haja acordo até 19 de outubro.

Questionado pelos dois deputados sobre o que tenciona fazer nessa situação, Boris Johnson não respondeu diretamente. Antes disso, contudo, já tinha sido claro ao sublinhar, uma vez mais, que um no deal se mantém em cima da mesa: “Se os nossos vizinhos europeus decidirem não demonstrar a mesma flexibilidade que nós, devemos então sair no dia 31 sem acordo. E estamos preparados para tal”, afirmou.

A sessão no Parlamento decorreu num tom muito menos aguerrido do que da última vez que o primeiro-ministro ali esteve, tendo o primeiro-ministro sido condenado por vários deputados pela linguagem que utilizou à altura. Desta vez, Boris aproveitou para atirar farpas, referindo quer a Corbyn, quer a Blackford, não ter apreciado “o tom” que utilizaram nas suas intervenções. Outra farpa veio da direção do presidente da Câmara, John Bercow: reconhecendo a sua extrema rouquidão neste dia, garantiu que tal não se deve a ter consumido “testículos de canguru”, como o primeiro-ministro desejou na sua intervenção no Congresso do Partido Conservador, no dia anterior.

Os deputados não fizeram perguntas sobre o tema, mas já é certo que haverá uma nova suspensão do Parlamento,  anunciada pouco antes da entrada do primeiro-ministro pelo seu ministro dos Assuntos Parlamentares, Jacob Rees-Mogg. O Governo mantém um Discurso da Rainha para dia 14 de outubro, a fim de iniciar uma nova sessão parlamentar, e, por isso, pede que este seja suspenso da próxima terça-feira (dia 8) até ao dia 14, para a Rainha preparar a sessão. Esta deverá ter sido, portanto, a última presença no Parlamento de Boris Johnson até dia 19 de outubro, data-limite para o pedido de adiamento do Brexit em caso de não-acordo.