A indústria da moda está em mutação. Os criadores ajustam timings de apresentação, redefinem as lógicas das coleções e abraçam a sustentabilidade subvertendo todo o processo de conceção do que é ou não tendência. Ao segundo dia de ModaLisboa, as intenções dos designers portugueses ficaram bem claras. A derradeira tendência — a que prevalece e cada vez mais sobressai — é a de adaptar a criação a novas exigências e necessidades.

Nuno Gama, o homem do desfile espetáculo, trocou o formato convencional por uma performance de contornos poéticos. A base de trabalho foi, na verdade, literária. “O Principezinho”, de Antoine de Saint-Exupéry, não é só um clássico mundial, é uma obra de culto para o próprio criador, dono de uma coleção que acumula diferentes edições nas estantes de casa. “É uma memória de infância e a primeira tatuagem que fiz no meu corpo, faz parte de mim”, revela, à conversa com o Observador.

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Leitor reincidente e colecionador, Nuno cedeu ao impulso e converteu a mensagem inspiradora do livro num momento que encheu a passerelle da ModaLisboa de personagens estáticas. Através delas, não mostrou a coleção para a próxima primavera, mas sim uma edição de figurinos, peças únicas concebidas unicamente para o espetáculo. Sonho, imaginação, sabedoria, poder, liberdade e responsabilidade foram algumas das palavras de ordem que espalhou por um percurso feito a passos lentos pelo público.

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Para o orientar neste conceito sui generis, onde a cenografia e a fantasia do vestuário desempenharam um papel primordial, disponibilizou um cadernos de esboços. Ao fundo, soava a voz do cantor André Viamonte, acompanhado por uma banda.  A apresentação ficou ainda marcada por um casting impressionante. No final, lá estava um principezinho sentado sob o vão de uma janela, símbolo de tempos de mudança e do fazer de forma diferente. Nuno Gama adiou seis meses a apresentação da coleção primavera-verão 2020. Acontecerá na próxima edição, em março e as peças ficarão imediatamente à venda.

O último sábado foi dia de agenda compacta. No total, foram dez os desfiles que decorreram nas antigas Oficinas Gerais de Fardamento e Equipamento do Exército, com os nomes emergentes a ocupar uma fatia considerável do alinhamento. Foi o dia da Imauve, a viagem iniciada por Inês de Oliveira há precisamente dois anos. As suas coleções são agora stories, pequenas edições de peças que a jovem criadora que ir lançando mais amiúde. Desta vez, apresentou-nos um dois em um — uma pequena cápsula de básicos e uma piscadela de olho ao próximo verão assente nas cores vibrantes do México.

Imauve © Melissa Vieira/Observador

“Muita gente vê a Imauve como algo inalcançável, quis torná-la mais inclusiva, não só em termos de preços como em termos de tamanhos. Havia quem dissesse que não cabia nas minhas peças, então criei modelos mais abrangentes, silhuetas mais soltas, que podem ser usados em qualquer tipo de corpo. Os básicos nasceram aí. Eu própria visto-me assim e dava por mim muitas vezes a não usar as minhas coleções”, revela, à conversa com o Observador. Estação após estação, Inês mede o pulso ao mercado e à própria clientela, à medida que vai aperfeiçoando uma estrutura que, gradualmente, perde o pequenos vícios da indústria. Na última, edição, aboliu quase por completo o peso das estações na roupa. Agora, cria uma conjunto de peças resistentes, simples e confortáveis que serão permanentemente comercializadas e adaptadas às cores e acabamentos dos restantes lançamentos. Algumas delas, também são unissexo.

“As coleções são uma coisa muito efémera e não me identifico nada com a moda descartável. Aqui, o objetivo foi testar as peças, prototipar, vestir, lavar, quase que submetê-las a testes de stress e torná-las mesmo usáveis”, reitera. Por outro lado, Inês continua a alimentar os seus objetos de inspiração. Nas suas viagens conceito, entrou na casa-estúdio de Luis Barragán, na cidade do México, e deixou que as cores que lhe pintam e iluminam as paredes fossem as mesmas que coloriram a coleção ensolarada que apresentou este sábado na plataforma LAB — o rosa, o laranja, o amarelo e o verde lima sobre a paleta serena que já caracteriza a marca, à base de tons marfim, beges e castanhos. Dos vestidos longos e leves aos bodies tricotados, Inês consumou a versatilidade na Imauve.

Entre pesos pesados da moda nacional e novas promessas, muitos outros nomes passaram por este segundo dia de ModaLisboa. Entre eles João Magalhães, autor de uma desconstrução das silhuetas classicamente femininas, postas à mercê as elementos tecnológicos. O resultado foi um “tecnoglamour” assente numa mistura de vinil, silicone, organza e chiffon de seda. Na passerelle, o criador contou com as colaborações de Guilherme Curado, de Juliana Bezerra e do Studio Areia, nos estampados, nas joias e no swimwear, respetivamente.

Ricardo Preto © Melissa Vieira/Observador

Patrick de Pádua regressou à ModaLisboa, depois da ausência da última edição, e desfilou em parceria com a marca de calçado Ambitious. Uma coleção desenhada a partir dos Club Kids dos anos 90. Quem também pisou as antigas oficinas foi Aleksandar Protic. O desfile abriu com um trench coat imponente para depois saltitar entre estrelas, xadrez e cores sólidas e vibrantes como o laranja e o verde. Ricardo Preto apresentou “Awake”, uma coleção desenhada em exclusivo para a multinacional filipina Rustan’s. Entre coordenados formais, marcados por blazers decorados com pedraria, às peças dignas de uma edição resort, com destaque para um vestido estampado com uma paisagem, o criador português esboçou um verão eclético, diverso em silhuetas e materiais.

Em parelelo com o calendário de desfiles, uma das salas do edifício recebeu a apresentação do projeto “Don’t be shy, touch yourself!”, que uniu o criador Luís Carvalho e Tânia Dioespirro, stylist portuguesa recentemente diagnosticada com cancro da mama. O momento ficou marcado pelo lançamento de uma t-shirt, símbolo desta ação de sensibilização para o autoexame. A peça já está à venda, custa 35 euros e 85% do valor será doado à Liga Portuguesa Contra o Cancro.

A t-shirt Don’t be shy, touch yourself custa 35 euros, 85% do valor reverte para a Liga Portuguesa Contra o Cancro

Alexandra Moura deixou a sua marca neste segundo dia de desfiles no Campo de Santa Clara. A expectativa só aumentou quando, minutos antes do desfile, se assistiu à chegada de pesados blocos de gelo com chapéus de praia azuis no interior. Por muito que fosse o entusiasmo em torno dos elementos cénicos, a coleção da criadora para a Decenio superou todas as projeções. Dos arquivos da marca, Alexandra trouxe finos tecidos usados nos forros dos blazers. Da alfaiataria pura e dura para o glamour rock das grandes estrelas de férias do sul de França, os materiais assumiram a forma de conjuntos ao estilo pijama.

Os próprios elementos do fato espreitaram em quase todos os coordenados — blazers cortados e deixado a desfiar, outros transformados em coletes, outros simplesmente sobrepostos em vestidos, peças claramente feitas em atelier. Ainda por revelar está a seleção de peças que irá, de facto, chegar às lojas. Depois de ter apresentado a sua própria coleção primavera-verão 2020 em Milão, a criadora volta às passerelles portuguesas já no final deste mês, no Porto.

#DecenioAlexandraMoura © Melissa Vieira/Observador

O desfile #DecenioAlexandraMoura não foi o único a ser trazido pelo Portugal Fashion. Luís Onofre desceu até à capital para integrar, pela primeira vez, o calendário da ModaLisboa. O verão de Onofre desce, ocasionalmente do salto alto. Em vez das peles de animais, o criador de calçado apostou em tecidos e no trabalho de bordados e pedraria, mas sem níquel, assegura. A cortiça e a madeira compuseram os saltos, enquanto os ténis, vertente cada vez mais desenvolvida pela marca ganham volume. Onofre já aderiu à moda dos chunky sneakers.

Ricardo Andrez segue convicto na sua caminhada por uma maior sustentabilidade. Pela segunda coleção consecutiva, o criador trabalho com tecidos provenientes de dead stocks, materiais que já não teriam qualquer aproveitamento. “Aqui, o conceito é o próprio processo”, admite o designer. Imprimir o lado mais autoral da marca numa base de trabalho que não foi construída do zero parece ter sido o grande desafio de mais uma coleção consciente. Os detalhes industriais trouxeram essa linguagem própria para as peças, ao passo que os tingimentos trouxeram ao de cima o lado mais rebelde de Andrez. É que metade da coleção usa e abusa do tie-dye, mais uma preocupação na hora de escolher o sítio onde o trabalho é feito, já que a pegada do processo é das maiores dentro da indústria.

Dino Alves © Melissa Vieira/Observador

Com Dino Alves, a passerelle cobriu-se de pó de talco, transformando-se numa espécie de grande boudoir. Os detalhes da roupa interior saltaram para fora, dos tons nude e rendas às ligas e estruturas que remetem para saiotes e crinolinas. O criador usou sobretudo tecidos reciclados e ainda organza de seda. Dotada de um certo romantismo, mas igualmente pautada pelo traço gráfico de Dino Alves, a coleção “Private Place” encerrou o segundo dia de desfiles.

Domingo é o terceiro e último dia de moda nas antigas oficinas do Exército. Carolina Machado, que desfila no exterior do Panteão Nacional, Constança Entrudo, Duarte e Gonçalo Peixoto são as novas promessas que reclama a agenda da tarde. Kolovrat, Carlos Gil e Luís Carvalho completam o dia. Até lá, na fotogaleria, veja as imagens que marcaram os desfiles do último sábado.