Alexandra Moura viu carta branca quando foi convidada pela Decenio para desenhar uma coleção de pronto-a-vestir. Surpreendente? No mínimo. Afinal, a relação entre a moda de autor portuguesa e as grandes marcas de produção industrializada não é conhecida pela proximidade. À primeira surpresa acresce o facto de serem dois estilos praticamente antagónicos. De um lado, um guarda-roupa predominantemente clássico que, nos últimos anos, se tem aproximado do estilo ensolarado da moda mediterrânica. Do outro, uma criadora de alicerces conceptuais, cujas linguagens desportiva, urbana e romântica se têm fundido numa única silhueta, por sinal, especialmente popular no mercado asiático.

Por estes dias, Alexandra trabalha o todo o vapor. Dispostos na parede, os esquiços ainda estão sujeitos a alterações. O que vemos neles é o estilo já reconhecido da designer, mas com uma abordagem mais comercial. Ao lado, fazem-se os primeiros testes em pano cru. Se para Moura este é um recreio novo (mas igualmente apetecível), para a Decenio, é uma viragem de 180 graus na proposta de vestuário que faz há mais de 25 anos.

Os tecidos e cores da coleção que começa agora a ganhar forma © Kimmy Simões/Observador

Ricardo Fernandes, CEO do grupo que detém a Decenio, fala numa “vontade” de trazer a mudança para dentro de casa, seguindo o exemplo de marcas internacionais que procuraram em colaborações improváveis a receita para a disrupção. “Percebemos que o caminho para a mudança começa com o trabalho dos designers, são eles os elementos centrais na indústria da moda. À medida que fomos avançando na definição da estratégia, a ideia de trabalhar com um designer externo foi ganhando corpo. E somos uma marca portuguesa, por isso é lógico que tínhamos de começar com um designer português”, explica Ricardo Fernandes em declarações ao Observador.

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Alexandra Moura foi, desde o início, a primeira opção para a marca. Disposta a estrear-se num estilo muito mais próximo do streetwear contemporâneo, deu à designer liberdade total para criar uma coleção com peças masculinas e femininas, embora até essa separação se veja agora esbatida pela fluidez dos volumes e dos cortes. No novo atelier, na Rua de Xabregas, a criadora explora uma nova faceta criativa. “Acho que foi precisamente por estarmos tão longe do que eles fazem que viram potencial em trabalhar connosco. De repente, vemos uma marca já com um caminho percorrido a aliar-se à moda de autor para criar uma linguagem nova”, afirma Alexandra Moura ao Observador, ao mesmo tempo que conta ter reagido à proposta, num primeiro momento, com estranheza.

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“Para mim, a Decenio era uma marca industrial, mais comercial, sem grande história no que toca a conceitos”, admite. Ainda assim, a criadora foi aos arquivos da fábrica em busca de matéria-prima. Voltou de lá com uma base de trabalho inesperada — riscas de camisaria, padrões florais, diferentes tons de bege, um azul que classifica como “retro” e tecidos fluidos, geralmente utilizados para forros, a partir dos quais irá construir coordenados sofisticados, ao estilo pijama. Da modelagem à construção das primeiras peças, tudo será feito no atelier, em Lisboa. A coleção bebe de ambas as partes, mas o que sobressai é um guarda-roupa desenhado à imagem e semelhança de Alexandra Moura.

“A coleção está cheia de coisas muito nossas — o trabalho das volumetrias, as peças clássicas desconstruídas, a nossa modelagem, o efeito inacabado — mas os tecidos não são os que tipicamente usamos”, explica Alexandra. O mediterrânico é recontextualizado, ganhando uma versão muito mais urbana e quotidiana. Da fábrica da Decenio estão para chegar vários blazers para, a partir deles, nascerem novas peças. Aos tecidos resgatados do baú, juntam-se novos elementos. O objetivo é fazer nascer combinações inusitadas, diluindo na coleção um laranja enérgico e um tecido técnico, perfurado e ligeiramente esponjoso. Destaque para um padrão elaborado em exclusivo para a colaboração, a partir de uma fotografia tirada pela própria designer. “Aqui, o peso da conceptualidade é menor. Nas nossas coleções, é tudo mais extremo. É como se pudesse fazer aqui o que não faço na minha marca, onde tudo tem de ser muito mais fiel a um conceito. Este é, sem dúvida, um produto mais editado”, conclui.

“Estamos a iniciar uma nova etapa e, certamente, que este trabalho terá continuidade”, esclarece Ricardo Fernandes. A Decenio soma já mais de 25 anos no mercado, mas há cinco mudou de mãos. Foi adquirida pelo grupo português Cães de Pedra, também detentor da marca Lion of Porches. Ao Observador, a empresa não quis revelar números relativos ao volume de vendas, receitas ou exportações. Segundo o Jornal T, em setembro do ano passado, o grupo empregava um total de 600 pessoas e previa fechar o então corrente exercício com um volume de negócios próximo dos 50 milhões de euros. O grupo assegura que a Decenio tem sido alvo de investimento, sobretudo em lojas, tecnologia e recursos humanos. “Agora, vamos investir na imagem”, completa.

A mudança não se limita à colaboração com Alexandra Moura. Numa produção divulgada esta semana, o habitual registo da marca surge retemperado. “Queremos começar a falar também para um público mais jovem”, afirma Ricardo, consciente do posicionamento sólido que a marca já conquistou no mercado — no próximo ano, por exemplo, a Decenio irá vestir a comitiva olímpica portuguesa. Mas explorar a recetividade de um novo público é algo que Alexandra também irá fazer. Se o seu trabalho em nome individual permanece num nicho, esta é a oportunidade para ver o próprio designer difundir-se numa rede de distribuição mais ampla. As expectativas comuns não ficam por aqui. O sentimento de passo em frente rumo a uma relação mais estreita entre indústria e moda de autor é igualmente partilhado. “Talvez ainda não tenham sido dados todos os passos necessários. É sempre muito importante falar com os designers, é nisso que acreditamos. Eles são o futuro da moda portuguesa”, remata o CEO.

Os primeiros testes em pano cru para a coleção Decenio Alexandra Moura © Kimmy Simões/Observador

Para ver com os próprios olhos a coleção Decenio Alexandra Moura vai ter de esperar — a chegada às lojas está planeada para a próxima primavera. De volta ao novo atelier de Alexandra Moura (a criadora mudou-se do Príncipe Real para Marvila em julho deste ano), a equipa trabalha em duas frentes — a nova colaboração e a coleção que irá apresentar no final de setembro, na Semana da Moda de Milão. Será o segundo desfile de Alexandra enquanto nome do calendário oficial, depois de, no início deste ano, ter sido convidada pela Camera Nazionale della Moda Italiana a marcar presença entre os grandes nomes da moda internacional.

Aos poucos, a marca cresce e sem dar sinais de querer abrandar. Na nova casa há também novas máquinas, novos membros na equipa e uma mesa de corte já a caminho. O objetivo é investir na autonomia do atelier, apesar da pequena escala. Para o futuro, Alexandra projeta uma evolução sustentável, à medida de uma marca independente. Há planos que já estiveram mais longe de serem concretizados. Depois de olhar de relance para o ecrã de um computador, uma confissão de última hora: Alexandra gostava de vestir Missy Elliot, personificação de um equilíbrio perfeito entre clássico e contemporâneo. Se é pouco provável? Há poucas semanas, pediram-lhe peças para o trio norte-americano Migos. Tal como a “pequena fábrica”, onde todas as ideias podem ser testadas de imediato, chegar ao patamar das estrelas já não é uma miragem.