A cadência é semelhante, o contexto em que está inserido é que nem por isso: se no arranque a bancada para 44 arguidos estava cheia, com o ex-presidente do Sporting Bruno de Carvalho na última fila e apenas uma falta (Fernando Mendes, por motivos de saúde), neste segundo dia quase metade foi dispensada de comparecer pelo trabalho ou pelos estudos. O dia terminou com alguns advogados a tentarem jogar a cartada que já tinham usado na fase de instrução: inviabilizar a investigação. Mas com outros trunfos: o auto de notícia elaborado pela GNR sobre o dia do ataque à academia de Alcochete.
Depois de uma primeira sessão em que só um arguido se dispôs a falar (o oficial de ligação dos adeptos Bruno Jacinto), esta terça-feira foram ouvidos três militares da GNR que foram dos primeiros a chegar ao local depois do alerta dado pelo responsável pela segurança da academia, Ricardo Gonçalves.
Mas foi depois do depoimento do comandante de posto Márcio Alves, que assinou o auto de notícia com o comandante do Núcleo de Investigação Criminal do Montijo, Fábio Castro, que os advogados começaram a puxar dos trunfos dos requerimentos. Depois de o sargento ter dito que começou a escrever o auto ainda no dia do 15 de maio e que este foi “engordado” noite fora com o material de Fábio Castro, o comandante afirmou não ter a certeza se o assinou a 15 ou 16. E, confrontado pelo advogado Miguel Matias, admitiu que ali constam dados que não foi ele que recolheu ou presenciou.
O advogado do arguido Afonso Ferreira lançou então o pedido à juíza: impugnar o auto de notícia do ataque à Academia de Alcochete, feito pela GNR, não pela data, mas pelo facto de haver matéria que ali consta que não foi presenciada pelos militares que o assinam, violando assim a lei. Pede assim que o coletivo não considere aquela prova (o que ela ainda há-de decidir).
Os advogados que lhe seguiram não mais saíram do tema do auto de notícia. Houve quem perguntasse ao militar se assinava coisas que não eram verdade, uma vez que o auto fora assinado depois do dia 15. “Eu estive a noite toda acordado, a ocorrência começou a 15 e levou muito tempo, é normal ter assinado sem dar importância à data”, justificou. Os advogados continuaram a puxar pela alegada fraqueza do documento, até que a juíza confirmou no processo que o documento foi entregue ao Ministério Público no dia 16 de maio, logo terá sido assinado nesse dia. Ainda assim as questões permaneceram até ao final da sessão. Com um pedido da procuradora do Ministério Publico para deixar tudo esclarecido.
— Isto foi uma prática exclusiva do caso de Alcochete ou é normal em processos em que participam muitos militares ser o responsável a assinar?, perguntou a procuradora.
— É normal, eu coloco as informações que todos recolhem e assino como comandante, respondeu.
A juíza decidirá se é ou não normal. Sílvia Pires tem também nas mãos outro requerimento de Miguel Matias, apresentado de manhã, em que refere que existem no processo 23 autos de libertação dos arguidos que foram primeiramente detidos, que não foram cumpridos. “O que se passou entre o momento em que os arguidos são postos em liberdade e voltam a ser detidos quatro horas depois para serem presentes a juiz?”, questionou.
Miguel Matias já tinha tentado, na fase de instrução, inviabilizar toda a investigação por ter sido entregue à GNR e não à PJ, com competência ara investigar crimes de terrorismo. Sem êxito.
“Demoram muito? Há jogadores agredidos”
O primeiro militar a ser ouvido, ainda de manhã, foi Tiago Mateus que estava ao comando da patrulha nesse dia 15 de maio (entre as 16h e as 00h), sendo assim o primeiro a chegar à Academia depois de uma chamada do seu comandante de posto “para o telemóvel pessoal”. Uns cinco minutos depois, houve uma segunda chamada com a mesma intenção. “Demoram muito? Há jogadores agredidos”, atirou Márcio Alves — o comandante do posto de Alcochete que à tarde explicou à juíza as razões desta insistência. É que em 10 minutos recebeu dois telefonemas de Ricardo Gonçalves, o responsável ela segurança da Academia, um que dava conta de que uma centena de adeptos se preparava para falar com os jogadores na academia, outra a insistir que viessem porque já havia agressões.
— Estamos a chegar Comandante, na Nacional 4 a virar para a Academia, disse Mateus (que já tinha estado antes na Academia e na própria zona dos balneários mas por ser também do INEM), enquanto seguia no lugar do pendura da carrinha que acelerava em marcha de urgência.
“Quando seguia vi indivíduos a correr, alguns encapuçados, a deslocarem-se para um parque de estacionamento fora da Academia. Estavam lá cinco a seis carros nesse parque. Seguimos para a Academia mas as cancelas estavam fechadas e o vigilante disse ‘Cá dentro já não está mais ninguém, estão todos em fuga’. Demos meia volta e fomos fechar a estrada. Foi nessa altura que um BMW X3 tentou abalroar o carro patrulha para fugir”, contou, explicando ainda que a prioridade inicial era perceber o que tinha passado ou estava a passar na Academia.
— Quem estava ao volante ainda me perguntou ‘Bato com o carro ou não?’ E eu disse: ‘Não porque se não apanharmos ninguém metemo-nos numa embrulhada e ainda temos de pagar’“, acrescentou mais tarde.
A carrinha patrulha, por não conseguir ocupar toda a largura da via, ainda avançou e fez marcha-atrás para evitar que essa viatura passasse pela zona da vala. Ao perceber que não conseguiria passar, o X3 deu meia volta e foi para o lado contrário tal como as duas outras viaturas que estavam atrás, “um Renault Megane e um Seat Ibiza”. “Eles foram mas até chegar os reforços tivemos de ficar ali. Estava ao pé de um Smart branco um senhor novo, que disse que era jornalista do Sporting e se chamava Emanuel Calças. Estava apeado”, referiu. Mais tarde, percebeu-se nas perguntas dos (muitos) advogados que das duas uma: ou era alguém a fazer-se passar por Emanuel Calças (arguido que passou pelo departamento de comunicação do clube) ou se tratava de um lapso, na medida em que seria nesse mesmo dia detido mas sendo um dos elementos que ocupava o tal BMW X3 que estaria em fuga.
“Fomos atrás dos veículos depois de chegarem as outras viaturas policiais. Eles viraram para a Herdade do Cavalo Branco, que não tem saída, e bloqueámos essa parte. Os ocupantes do Megane e do Ibiza saíram do carro, foram para o chão para se proceder a revista e não ofereceram resistência. Nisto vejo o X3 a passar pelo meio da areia e dos sobreiros e alerto os reforços para isso porque estávamos a fazer as identificações. Percebi que já tinha sido intercetada pelas comunicações via rádio, uns quilómetros à frente”, explicou Tiago Mateus, militar da GNR que voltaria à Academia uma hora depois: “Vi instalações danificadas e o meu trabalho era impedir a entrada dentro dessa sala, desse balneário. Havia sangue no chão e objetos fora do lugar. Não vi jogadores do Sporting feridos e só estavam pessoas do Sporting. Fernando Barata, ou Fernando Mendes como é conhecido? Vi o senhor Fernando Mendes na TV mais tarde nas notícias mas nunca o vi lá dentro, na Academia”.
Mais tarde, até pelas perguntas que foram sendo feitas, percebeu-se que afinal um dos carros era um Peugeot. E ainda se discutiu as distâncias, o que era alta velocidade ou velocidade excessiva (“Já estamos aqui numa aula de condução… Fez aquele arranque forte para a velocidade excessiva não é senhor militar? Porque se não bateu…”, atirou a juíza), se um dos vidros estava partido ou rachado, o que era um “balneário virado ao contrário”. Já no final da hora e meia de testemunho, a juíza Sílvia Pires não permitiu uma pergunta a Miguel A. Fonseca, a propósito de um jogo de juniores entre Sporting e Benfica que terminou com confrontos e arremesso de pedras.
— Esteve lá? Ou sabe, porque isto foi assunto de Telejornal?, questionou o advogado de Bruno de Carvalho, que já antes quis saber mais sobre o que era um balneário desarrumado “por ter sido também jogador de futebol”.
— O nosso processo não é o Telejornal, é 15 de maio de 2018. Neste dia não havia jogo, vamos aos factos, disse a juíza presidente. Uma mensagem que viria a transmitir de novo já da parte da tarde,
À tarde, com a ausência notada de Elton Camará (mais conhecido como Aleluia), foi a vez de falar o militar da GNR André Medinas, que fazia patrulha com Tiago Mateus no dia do ataque à Academia. O militar recordou que depois de terem chegado reforços que regressou à Academia e ficou junto dos jogadores para lhes dar indicações sobre o que deviam fazer. “Recordo-me de falar com o Rui Patrício”, referiu. “Jogadores feridos? Não me recordo de marca nenhuma, não tenho imagem de alguém magoado”, acrescentou, dizendo que nesse momento não tinha visto o treinador, Jorge Jesus, nem Bas Dost, avançado que ficou com as marcas mais visíveis após um ataque com uma ferida profunda na cabeça. “Rui Patrício estava ali mais calmo, a comunicar connosco e a acalmar os ânimos”, frisou ainda Medinas – que não esteve no balneário para preservar provar para os peritos da GNR – no final da inquirição do Ministério Público.
— O ambiente que vi era misto. Havia muitos jogadores inquietos, que queriam ir embora ou ir ao hospital, diziam que tinham sido agredidos. E depois havia calmos, como o Mathieu. Estava muito calmo, recordou.
Questionado mais tarde por Miguel A. Fonseca, advogado de Bruno de Carvalho, André Medinas tentou recordar outras pessoas que tinha visto a 15 de maio na Academia. “Acho que vi Jaime Marta Soares, Eduarda Proença de Carvalho [n.d.r. na altura vice-presidente da Mesa da Assembleia Geral do Sporting] não sei quem é. Bruno de Carvalho? Presumo que vi Bruno de Carvalho mas não tenho a certeza”, respondeu. A testemunha que lhe seguiu acabaria por confirmar a presença do ex-presidente do Sporting na Academia.
O advogado aproveitou, então, para dizer à juíza que “curiosamente” tinha desaparecido essa hora das imagens do sistema de vigilância da Academia e que já tinha perguntado pelas mesmas ao Ministério Público, continuando a aguardar pelas mesmas ou por uma resposta. “Estamos todos”, respondeu secamente a juíza presidente, Sílvia Pires. Em resumo, da seleção de imagens entregues ao Ministério Público não consta a hora em que estiveram no local vários elementos da direção do Sporting.
Sem arguidos mediáticos, advogados foram alvo dos holofotes
Pela manhã, e sem o protagonismo dos arguidos mais mediáticos, os holofotes viraram-se para os advogados, ou melhor, para a porta de acesso ao Tribunal de Monsanto a eles destinada. A PSP preparava-se para revistá-los e os advogados recusaram essa revista. Aníbal Pinto e Miguel Matias deram dois passos atrás e disseram aos restantes colegas, mais de duas dezenas, que em solidariedade com eles não deviam entrar. Ninguém entrou, tiveram algumas declarações aos jornalistas e o “caso” acabou por ficar resolvido em três minutos, com a porta a abrir-se com essa inversão da necessidade de revista.
É que já no dia anterior, logo no arranque da sessão, os advogados tinham chamado à atenção da juíza presidente Sílvia Pires para o facto de os quererem revistar à entrada do tribunal. À tarde a questão não se colocou, esta manhã registou-se este episódio que acabou resolvido em cerca de três minutos, com os advogados a entrarem sem serem revistados. Quase uma hora depois das 9h30 (a hora marcada inicialmente), a sessão começou.