Mais de 2.000 euros líquidos para dar “estabilidade emocional” ou para serviços de “assessoria”? As duas explicações surgiram na imprensa e ambas são atribuídas ao presidente executivo do Caixa Central de Crédito Agrícola Mútuo (CCCAM), Licínio Pina, o homem no “olho do furacão” por ter posto o banco a pagar desde pelo menos 2016 uma subvenção à sua mulher, a antiga professora Maria Ascensão Pina.
O caso foi alvo de uma denúncia anónima ao Banco de Portugal – que fez perguntas ao banco sobre o assunto – e a subvenção entretanto parou (ou foi convertida noutro tipo de pagamento). Certo é que esta subvenção à mulher não impediu a recondução de Licínio Pina no cargo. Em 2019, o conselho de administração da CCCAM foi reeleito e na avaliação pelo Banco de Portugal aos seus elementos, no quadro do processo fit and proper, que avalia a idoneidade e adequação ao cargo, passou o teste.
O processo de avaliação aconteceu já depois de uma intervenção do supervisor bancário junto da administração do Crédito Agrícola na sequência de denúncias anónimas recebidas sobre várias situações, entre as quais o pagamento de uma subvenção pela instituição à mulher de Licínio Pina. Esta história já tinha aparecido algumas vezes nos jornais, mas não se sabia o valor em causa até ser noticiado esta quinta-feira pelo Jornal de Notícias. Em causa estarão de mais de dois mil euros líquidos por mês pagos pelo menos desde 2016 e até 2018.
Crédito Agrícola pagava 2 mil euros a mulher do presidente para garantir “estabilidade emocional”
Esta foi uma das matérias que suscitou uma inspeção à Caixa Central onde foram pedidos esclarecimentos sobre esta contratação. Não é claro se o Banco de Portugal deu ordem para travar o pagamento desta subvenção, mas o que é certo é que da sua intervenção e das questões colocadas, o resultado foi a interrupção desta transferência antes da reavaliação da idoneidade do presidente da CCCAM. Outras situações reportadas também terão sido esclarecidas ou corrigidas em linha com o entendimento do Banco de Portugal.
Contactado pelo Observador sobre este caso, fonte oficial do Banco de Portugal afirma apenas que “avalia todas as denúncias que lhe são transmitidas, formulando as conclusões fundamentadas que sejam suscetíveis de ser obtidas, quer no plano prudencial quer no plano sancionatório”.
Inicialmente, o Grupo Crédito Agrícola não quis fazer comentários. No entanto, o próprio presidente da instituição já tinha prestados esclarecimentos sobre o tema quando foi questionado sobre uma auditoria interna pelo jornal Expresso em fevereiro deste ano. A questão da contratação da mulher do presidente da Caixa Central, por indicação do próprio, tinha sido alvo de denúncias anónimas dentro do grupo bancário e Licínio Pina começou por justificar esta medida aos órgãos sociais do grupo com os argumentos que foram agora relançados pelo Jornal de Notícias. A mulher de há mais de 36 anos era apontada como “um fator de equilíbrio” que lhe garantia a “estabilidade emocional” que precisava para dirigir o grupo que representa 80 caixas agrícolas.
Citado pelo jornal Expresso, o conselho de administração executivo da Caixa Central dava no entanto outras justificações. Negando tratar-se um trabalho fictício atribuído à esposa do seu presidente, referia que a contratação como sua assessora tinha sido uma das únicas condições impostas por Licínio Pina, que então comandava a caixa de Seia, para aceitar a liderança do grupo. A esposa, até então professora numa escola local, terá perdido esse emprego quando veio para Lisboa, e passou a desempenhar as funções de assessora, dando apoio de secretariado do marido, ganhando um salário que apesar de ser pago pela instituição saia do pacote remuneratório atribuído ao presidente, o marido, e sem encargos adicionais para a CCCAM. Deixaria estas funções quando Licínio Pina abandonasse o cargo, sem direito a quaisquer compensações.
Estas condições fizeram parte do pacote de compensações negociado com a comissão de remunerações do grupo e foram aprovadas pelo conselho geral e de supervisão, então totalmente composto por membros da administração das caixas que constituem o grupo CCCAM. Contactada novamente pelo Observador, fonte oficial do Grupo Crédito Agrícola acabou por confirmar apenas a informação anteriormente prestada ao Expresso. Maria Ascensão Pina exerceu funções como assessora do presidente, de quem é mulher, tendo cessado com a eleição para o novo mandato do conselho de administração. Nenhuma das outras questões teve resposta.
Não há informação exata sobre quando começou o pagamento do subsídio à mulher de Licínio Pina e o Grupo Crédito Agrícola também não clarificou. As notícias falam em 2016, ainda que o gestor tenha sido eleito presidente do grupo pela primeira vez em 2013. Certo é que ao longo dos três primeiros anos em funções (2013, 2014 e 2015) o salário anual fixo do gestor manteve-se estável: cerca de 350 mil euros brutos. O ano de 2016 coincide com o início do seu segundo mandato e é a partir daí – segundo os relatórios e contas – que a remuneração fixa de Licínio Pina começa a variar de ano para ano.
Em 2016, Licínio Pina ganhou uma remuneração fixa bruta anual de 399 mil euros, mais 100 mil euros de prémio de desempenho. No ano seguinte, a remuneração fixa saltou para 448 mil euros (com um bónus de desempenho de 96 mil euros). No ano passado outro aumento: 465 mil euros brutos fixos e um prémio de 96 mil euros.
Também não são conhecidos os contornos jurídicos da solução encontrada para o pagamento a Maria Ascensão Pina. Era um contrato de trabalho sem termo? A termo? Ou uma mera prestação de serviços? O banco pagava contribuições à Segurança Social? Sabe-se que o gestor passou a receber uma remuneração anual relevante desde que assumiu o cargo. Nos últimos dois anos foram quase mais de milhão de euros bruto anuais, incluindo prémios.
Pelo meio de tudo isto, mais uma fonte de confusão: Licínio Pina, em entrevista em novembro à TSF/Dinheiro Vivo, ainda foi questionado sobre as denúncias da carta anónima, especificamente sobre a contratação da mulher. Resposta? Desmentiu, ou pelo menos não clarificou imediatamente a questão, como tinha feito ao Expresso em fevereiro. Não se sabe qual a origem destas denúncias, mas no esclarecimento que enviou aos órgãos do banco, e que foi citado pelo Expresso, Licínio Pina fala em “maledicência” e “cobardia” por trás de manobras que teriam como objetivo desestabilizar o banco. Uma fonte contactada pelo Observador admite que a iniciativa terá partido de quadros afastados pelo presidente executivo.
Um grupo com milhares de associados, potenciais conflitos de interesses e um regime ultrapassado
A contratação, não sendo ilegal, ainda que insólita nos seus fundamentos, terá sido avaliada pelo Banco de Portugal à luz dos critérios que regem os conflitos de interesses dentro das instituições bancárias e surgiu num contexto de maior exigência da supervisão ao grupo que é composto por 80 caixas. A natureza deste universo empresarial, fragmentado e com pouca escala individual, dificulta por vezes a adoção daquilo que serão consideradas as melhores práticas na banca, em particular na escolha de centenas de administradores — o Expresso escrevia em fevereiro que teriam de ser afastados 150, muitos por não cumprirem o critério da licenciatura.
O caso é também revelador de uma certa ambivalência do quadro legal aplicado à instituição bancária que é o resultado da junção de dezenas de cooperativas apoiadas em 400 mil associados que são investidores e ao mesmo tempo clientes. Isto porque cabe à Caixa Central desempenhar funções de supervisão prudencial junto das caixas suas associadas, ao mesmo tempo que estas são também as suas acionistas e, nessa qualidade, têm o poder de escolher os dirigentes da CCCAM.
O regime jurídico do crédito agrícola mútuo já tem quase 30 anos e houve algumas iniciativas para o tentar rever e adaptar às novas realidades bancárias, mas o tema não tem andado dentro do Ministério das Finanças. O facto de o grupo ter apresentado ao longo dos anos uma situação financeira sólida, em contraciclo com a generalidade da banca portuguesa, também não contribuiu para que esta revisão andasse mais depressa.
O grupo conta atualmente com 657 agências, ultrapassando a Caixa Geral de Depósitos como o banco com maior número de balcões e é a única instituição bancária em vários concelhos. Em 2018, a CCCAM tinha mais de 4000 colaboradores e apresentou lucros de 112 milhões de euros.