Título: Memórias, Sonhos, Reflexões
Autor: Carl Gustav Jung
Editora: Relógio d’Água

Há na literatura poucos documentos tão atrativos como umas boas memórias. Seja pelos ambientes ou por uma vida especialmente exótica, as memórias são a forma de mesmo aqueles com quem a imaginação foi avara conseguirem ter matéria prima de verdadeiro interesse ao seu dispor.

E se, em geral, as memórias já são um espaço privilegiado para qualquer escritor exibir aquilo que de melhor tem no currículo, mais ainda o são para quem se dedica a analisar a psicologia humana. As confissões de Santo Agostinho não são apenas o relato completo da sua conversão; toda a passagem do mundo da retórica para o Cristianismo é um tratado sobre a estrutura do desejo. Da mesma forma, as Confissões de Rousseau são o ato de que o Emílio é a potência: o Bom Selvagem ganha forma no próprio Rousseau.

Com Jung o caso é semelhante: além de serem um registo interessante sobre a vida de um pensador de primeira, estas Memórias, Sonhos, Reflexões são um importantíssimo tratado prático de psicanálise. É certo que é interessante seguir o seu percurso na Suíça, de um rapazito pobre propenso a neuroses ao interesse pela metafísica, motivado pela teologia reformada e por Schopenhauer e Kant, ou das suas pequenas irritações com a atmosfera escolar ao estudo de medicina; mas estas memórias têm especial interesse por representarem a análise de quem analisa. Jung nunca perde o foco de analista, pelo que tudo na sua vida é analisado à luz de coisas muito maiores. O seu encontro e desentendimento com Freud é visto, quer através dos mecanismos psicanalíticos clássicos, quer através das desavenças ideológicas de ambos. Nesse sentido, as suas memórias não são apenas mais uma ata de uma sessão de autopsicanálise. O seu esforço para ter o método em constante avaliação – precisamente aquilo que acusava Freud de não fazer – liberta as suas memórias daquela inimputabilidade irritante tão comum na psicanálise.

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A psicanálise mais herdeira de Freud, tem alguns problemas claros. Em primeiro lugar, o seu método interpretativo torna não só difícil justificar a doença como doença, como transforma todo o argumento e toda a opinião numa bolha subjetiva. A ideia de que os nossos comportamentos dependem, não de intenções conscientemente formuladas, mas de manifestações do subconsciente, ou de recalcamentos desse mesmo subconsciente retiram à psicanálise o estatuto científico que Freud queria para ela. Se nem a palavra nem a ação valem por si próprias, se de nada podemos afirmar com clareza o seu significado, abrimos a janela a todo o tipo de interpretações, mas de tal maneira que nenhuma se pode provar.

A interpretação essencial de Freud, de que o recalcamento tem uma origem sexual, é uma hipótese; no entanto, como o próprio Jung explica, é uma hipótese que, partindo do método psicanalítico de derivar motivos de outros motivos ocultos, pode esconder também razões mais profundas. O desejo sexual não pode ser expressão de uma Nietzschiana vontade de poder? Ou de um desejo à maneira augustiniana?

Freud enraíza o desejo num mais ou menos omnipresente complexo de Édipo, de uma maneira de facto bem vista: é verdade que o desejo tem uma estrutura associativa e que o prazer e a dor têm sempre uma certa filiação. Isto é, quer na comida, quer no fumo, quer num desporto de que gostemos, aquilo que procuramos é sempre o mesmo, o prazer que isso nos dá. Ora, este prazer é aprendido nos primórdios da nossa existência, pelo que Freud o associa àquilo que, antes de qualquer outra coisa, nos pode ter dado esse prazer. A amamentação, a saída do útero, tudo questões relacionadas com a mãe – a mãe, no fundo, seria o nosso radical de prazer e dor. Sendo assim, é natural que o prazer instintivo em que a presença da mãe está vedado – o sexo – seja o motivo de recalcamento. A pulsão sexual tem uma carga tão grande porque está relacionada com a mãe.

É certo que Freud quis fazer da psicanálise uma matéria clínica. Neste sentido, o complexo de Édipo e a respectiva análise deveriam ser analisados pela experiência e não pela lógica. Isto é, se a observação nos dá os comportamentos que o complexo de Édipo descreve, não é preciso eu a teoria seja lógica para que esteja certa. No entanto, a partir do momento em que todas as manifestações psíquicas traduzem um complexo de Édipo recalcado, este deixa de ser um diagnóstico. Se um complexo traduz o comportamento x e o mesmo complexo traduz o complexo y, o que é que provoca a diferença?

Nesse sentido, a psicologia de Jung acaba por ser mais sensata e mais arguta. Para já, Carl Gustav Jung explica o comportamento, não como um produto do recalcamento, mas como o conflito entre duas personalidades, uma interior e outra exterior. E embora a divisão entre duas personalidades nos pareça simplista, a ideia de conflito traz mais possibilidades do que a aventada por Freud. O mal-estar não é provocado pelo recalcamento do subconsciente: não há razão nenhuma para que o subconsciente tenha mais legitimidade comportamental do que aquilo que o tenta travar. Jung usa a ideia de duas personalidades para nos mostrar que quer a personalidade exterior quer a interior nos pertencem. Ao contrário de Freud, em que uma estrutura maléfica represa um fundo bom, em Jung as categorias morais estão suspensas. Há, na nossa cabeça, vontades complexas e contraditórias, umas mais evidentes e outras mais ocultas, que se podem manifestar das mais variadas formas.

A inventividade de Jung na identificação destas manifestações é assombrosa e por demais interessante: desde os testes de associação à interpretação dos sonhos como mecanismos compensatórios, do valor dos símbolos como expressão daquilo que de outra forma não conseguimos expressar à topografia dos traumas, o trabalho de Jung na investigação da psique é um mundo que nos dá conta da grandiosidade do cérebro e da civilização; mas, sobretudo, o grande interesse da sua psicologia está na compreensão deste conflito entre vontades.

Num dos apontamentos destas memórias, Jung explica que o Cristianismo tem um papel fundamental na psicologia por causa da encarnação Divina. O Deus dos exércitos encarna num Deus de misericórdia; o Deus que não se vê e não se toca torna-se carne e é morto; o Deus do Cristianismo é o único Deus que mudou, de tal maneira que traz uma confusão ética a que é difícil escapar. O Cristianismo destruiu a ideia de “certo” e “errado” nos modelos tradicionais e transformou a lei num problema formal: isto é, continuamos a querer o certo, continuamos a ter uma ideia de lei comportamental, mas essa lei não tem conteúdo definido – não sabemos a que é que corresponde o certo. Ora, é esta compreensão fundamental em Jung – de que não sabemos o que é certo, se é a personalidade introvertida ou a extrovertida, se, no mesmo Homem, a interior ou a exterior – que tornam o seu trabalho clínico tão interessante. Cada caso, em Jung, está sujeito a uma interpretação nova. Não há uma tabela que explique a formação das neuroses e, embora algumas explicações nestas memórias sejam risíveis de tão simplistas, há sempre um esforço para identificar aquilo que é mais singular no conflito entre as várias personalidades de cada um.

Estas memórias têm episódios de uma candura algo surpreendente numa pessoa com a estatura intelectual de Jung, e umas incursões esotéricas que só dificilmente são toleráveis. No entanto, quer umas quer outras mostram a honestidade médica e intelectual de Jung. Jung interessava-se por tudo aquilo em que pudesse beber alguma coisa, e se isso o levou até à psiquiatria, também o levou ao limiar do ocultismo. Para alguém que, como ele, acreditava que todas as manifestações do espírito são expressões de alguma coisa mais profunda, nada é desprezável.

É por vermos nela esta curiosidade infinita que a tara pelas explicações improváveis nos parece tolerável e, neste caso, até interessante. A vida de Jung é relativamente simples; no entanto, tem o encanto que se encontra no princípio das coisas grandes; assistir ao relato das suas memórias é ter um registo dos problemas da psicologia quase desde o princípio. A inépcia de alguns procedimentos e o descobrir das primeiras vitórias, o crescer da clínica, o aparecer dos testes e dos métodos de análise, o esforço para criar uma linguagem que traduza aquilo que se está a fazer, tudo isso é interessante. Mais interessante é num Homem que está interessado por todo o mundo e por toda a cultura, dos fenómenos inexplicáveis aos mitos primordiais, da teologia à ciência pura, da literatura à filosofia de Schopenhauer e Nietzsche. Por se interessar por tudo e por ver em tudo uma manifestação daquilo de que trata, Jung nunca reduz a psicologia; é sempre uma obra grandiosa, e sempre alguma coisa que é maior do que o indivíduo. Estas são as memórias de alguém que não resolveu os problemas, mas que dedicou toda a vida a mostrar como eles eram enormes e, por isso mesmo, tão desafiadores.