Não é todos os dias que na assistência de um encontro com a comunidade portuguesa no estrangeiro está um familiar do primeiro-ministro. Foi o próprio António Costa quem ontem avisou Anna Karinaa que este domingo havia um encontro dos portugueses em Goa como o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, mesmo antes do fim da visita de Estado. E ela lá foi até ao hotel Cidade de Goa para a sessão de cumprimentos onde chegou a tirar uma fotografia com o chefe de Estado. E também o já famoso beijinho na testa presidencial.
“Foi ele quem me ligou ontem a avisar”, disse ao Observador, referindo-se ao primo primeiro-ministro de Portugal com quem diz que comunica com regularidade. Anna Karinaa nasceu na Finlândia (de onde a mãe é originária), mas depois mudou-se para Goa e é lá que está com a família. O pai, João, era o irmão do poeta Orlando da Costa, pai de António Costa. Quando o primo esteve em Deli, agora em dezembro, Anna Karinaa conta que ele ainda lhe ligou, mas dessa vez não se encontraram como aconteceu quando foi à Índia em 2017, numa viagem oficial que Marcelo insiste em classificar como o começo da preparação desta visita de Estado.
E a experiência familiar, até nisto da diplomacia internacional, dá sempre jeito. Marcelo lembrou nestes três dias que foi a ascendência goesa de Costa que oleou esta nova fase da relação Portugal/Índia. Já a ele, ter sempre família direta espalhada pelo mundo faz com que saiba “o que é ter a pátria nos nossos corações e construir portugais fora do território físico nacional”. “Os meus pais viveram grande parte da sua vida fora do território físico de Portugal, um irmão meu e a sua família viveram fora e um dos meus filhos e os meus netos também”.
Este foi o dia em que a visita de Estado decorreu mais ao estilo-Marcelo, com contactos populares, uma missa, um museu, comunidade, ou seja, a tirar a barriga da miséria de selfies e beijinhos. Logo de manhã, o Presidente da República foi à missa na Igreja da Imaculada Conceição, a única em Goa onde a celebração católica é feita na língua portuguesa.
“Tem sido sempre assim ao longo das últimas décadas”, comentou Marcelo à saída enquanto muitas das pessoas que com ele assistiram à celebração pediam selfies. “Há uma disciplina de português na formação dos próprios sacerdotes, os mais novos usam sobretudo o inglês, mas mantém-se esta tradição da missa celebrada em português”. A presença da Igreja Católica em Goa é “muito forte e faz uma diferença muito específica”, notou.
Quando os portugueses chegaram há 451 anos ao território, construíram várias igrejas e o primeiro convento da Ásia, o de Santa Mónica, onde está o museu de Arte Cristã em fim de obra de restauro. com o apoio da Gulbenkian. Marcelo esteve longamente a ouvir as explicações de cada pedaço recuperado e mais ainda quando visitou a Basílica do Bom Jesus (que data de 1518), mesmo ali ao lado, em Panaji (Pangim). Foi lá que visitou o túmulo de São Francisco Xavier e beijou a relíquia. Em Goa, 13% da população é cristã, uma minoria religiosa de um país que é maioritariamente hindu (mas onde a representação de muçulmanos é a segunda maior do mundo).
“Nem é um assunto delicado nem um irritante”, diz o MNE sobre práticas discriminatórias de Modi
As minorias religiosas (os não hindus) foram afetadas pela recente polémica alteração à lei da nacionalidade indiana, que veio conceder facilidades aos hindus, discriminando as restantes religiões professadas na Índia.
Ao Observador, o ministro dos Negócios Estrangeiros explica que no Estado de Goa “por influência do direito português, as questões normativas relativas ao direito da família se aplicam a todas as religiões. Independentemente da confissão religiosa, as pessoas têm os mesmos direitos e os mesmos deveres. Essa é uma característica do Estado de Goa que muito se deve à influencia do direito português e basta falar assim para perceber qual pode ser o caminho”.
A visita de Estado acontece numa altura de protestos no país contra esta alteração feita pela maioria que suporta o primeiro-ministro Narendra Modi, mas os representantes portugueses que privaram com o líder indiano nesta visita esquivaram-se sempre ao tema. Quando questionado pelo Observador se esta era uma questão “irritante”, tendo em conta que a comunidade portuguesa em Goa tem como herança uma religião minoritária, o ministro Augusto Santos Silva disse que a alteração á lei da nacionalidade não se trata de “um assunto delicado nem é nada um irritante”. E de Portugal garante que a posição em relação à Índia (e outros países) é “claríssima e equilibridassíma: a questão dos direitos é muito importante e diz respeito a todos (…), o segundo princípio é que não damos lições de moral aos outros (…) e o terceiro elemento é que entendemos que a melhor maneira de contribuir para que os outros façam o seu caminho é mostrando a nossa própria exemplaridade”.
O ministro não comenta a questão específica da legislação alterada por Modi, mas garante que é sempre sua prática “explicar sempre aos interlocutores qual a nossa solução, por exemplo, em matéria de nacionalidade. Se os interlocutores entenderem que esse é um bom exemplo que podem aproveitar, melhor, se não o entenderem, respeito”. Pelo meio, em comparação, também diz que a luta pelos direitos humanos ainda não é uma questão acabada nem mesmo em Portugal e exemplifica com os relatórios da Comissão dos Direitos Humano que “diz que ainda temos muito caminho a andar em matéria de violência doméstica e do tratamento nas prisões“, exemplifica o ministro.
As três grandes conquistas (palpáveis) da visita à Índia
Índia e Portugal fecharam, nesta visita, o compromisso de nos próximos seis meses facilitarem os vistos nacionais e autorizações de residência para trabalhadores e para estudantes. Marcelo detalhou que esta facilitação” é importante para quadros, mão de obra e jovens estudantes. É um regime muito flexível que interessa aos dois países”. Foi uma das três conquistas que a delegação portuguesa destaca.
Santos Silva junta-lhe ainda o “sistema de reconhecimento facial do aeroporto de Bangalore, que é um dos maiores do mundo, ser hoje operado por uma empresa de telecomunicações e de tecnologia de comunicação e de informação portuguesa e estar praticamente concluído um contrato dessa empresa com outro grande aeroporto indiano” e, por fim, a assinatura do contrato com as autoridades locais “para a assistência técnica portuguesa para a rede de abastecimento de água e de salubridade local“. Quanto ao facto de a maior parte dos outros entendimentos entre os dois países ter-se resumido à assinatura de memorandos, o ministro diz que “não é um objetivo de uma visita de Estado, essa procura de abrir portas e consolidar as que já estejam abertas”.
E registou os frutos do pequeno almoço restrito entre o Presidente e os empresários indianos em Mumbai: “Houve muitos interessados e envolveu vários dos maiores grupos empresariais indianos. A expectativa é muito positiva”, rematou Santos Silva sobre a visita.
Os compromissos para o próximo mandato. Mas “sabe-se lá se há próximo mandato”
Politicamente, Marcelo traz da Índia o convite aceite pelo seu homólogo Ram Nath Kovind de vir a Portugal no próximo ano, no próximo mandato do Presidente da República. Mas aí está um tema em que mantém o tabu. “Sabe-se lá se há próximo mandato”, disse quando atirava também para 2021 uma visita a Timor Leste, que lhe ficará a faltar neste. Próximo mandato haverá, resta saber se será com a mesma figura como Presidente.
Quanto à viagem que terminou este domingo, o Chefe de Estado garante ter feito uma tripla: “Missão cumprida nos contactos políticos, nos contactos empresariais e no plano cultural e humano”. Em Deli, Mumbai e Goa. Nesta última foi o que acabou por ter maior intensidade, com o Presidente a ir junto de “uma comunidade especial que vive a portugalidade de uma forma muito intensa e específica, com grande identidade e ligação aos países”.
Foi em Goa, com a comunidade portuguesa (que na verdade é composta sobretudo por descendentes de portugueses), numa sala do Hotel Cidade de Goa, que soltou toda a veia patriótica. É sempre assim, com Marcelo a carregar nas tintas do ser português perante os que estão fora e a demorar-se nos cumprimentos, selfies, troca de histórias e tudo o mais com cada um que marca presença. Os portugueses registados no consulado do país em Goa estão na ordem da dezena de milhar, a embaixada enviou convites a cerca de 200 pessoas e nem todas compareceram e ouviram Marcelo falar sobre o país que “tem um território físico pequenino, mas um território espiritual que cobre o mundo todo. E esse é o tamanho da nossa alma e a nossa alma é universal”. Um raciocínio sequencial que leva àquilo que Marcelo reconhece dizer até à exaustão ao ponto de “zangar” alguns: “Somos o melhor que há no mundo”.
“Alguns compatriotas zangam-se comigo porque acha que estou a exagerar. O problema é que conhecem pouco os portugueses. Se conhecessem mais os que estão fora do território físico perceberiam que somos do melhor que há no mundo”, atirou a destinatário incerto. Foi a este mesmo auditório que assumiu “os erros da história” portuguesa, espantando-se, no entanto, que “com menos de um milhão de pessoas, Portugal se tenha espalhado por todo o mundo e ajudado a fazer comunidades novas”. Foi assim que encerrou o capítulo Índia. E o tradicional mergulho? “Está nadado”, disse Marcelo pela meia noite do último dia quando, sem querer, se cruzou com um grupo de jornalistas, enrolado na toalha e acabado de sair do mar, mesmo ali junto ao hotel onde estava hospedado. Foi sem alarido cumprir a sua tradição, à noite, sem avisar a comunicação social.