De portas abertas à cidade, a ModaLisboa cumpriu a tarefa até ao fim — no domingo, último dia de desfiles, serviu de palco às propostas de criadores nacionais (e não só) para a próxima estação fria. Na plataforma Lab, Constança Entrudo e Hibu desafiaram, cada uma à sua maneira, a dinâmica sazonal da indústria. Awaytomars, a plataforma de design colaborativo, soma e segue. Já Ricardo Andrez refletiu sobre roupa e género e abriu caminho para o final emotivo de Dino Alves. Na fotogaleria, veja as imagens que marcaram este última dia de ModaLisboa.
Lab: a nova geração redefine a moda
Constança Entrudo foi o primeiro nome no alinhamento de domingo. Na passerelle secundária, a jovem designer subverteu toda a dinâmica de um desfile. Estáticos, com cenário e enquadrados por telas transparentes, os manequins posaram como quadros vivos. Entre os pequenos sets, vídeos expõem o processo criativo e as técnicas aplicadas pela criadora. “I don’t know if this exists” é uma coleção sem estação e de apenas seis coordenados. Indícios de que, para Constança, os velhos hábitos têm os dias contados.
“Não me vejo só como uma designer de moda, nem vejo a minha marca só como uma marca de roupa. Quero ter amor às peças que faço. Tenho tantas ideias e tantas coisas para desenvolver que gostava mesmo de me focar e de conseguir transmiti-las. Foi por isso que achei melhor apresentar uma coleção mais pequena, mas onde todas as peças foram pensadas e têm um propósito, é isso que defendo na moda, porque senão estamos só a produzir lixo”, admite Constança, em entrevista ao Observador.
Da mesma forma que a criadora surge mais consciente do que quer daqui para a frente, também as novas peças surgem mais usáveis, o que, segundo a própria, resulta de um maior conhecimento do corpo. Ao trazer para a sala de desfiles os bastidores da coleção, através dos vídeos, Constança quer levar a audiência a ir além da roupa, onde a poesia, a música e as artes plásticas são elementos de um habitat criativo mais abrangente. No futuro, a designer imagina-se a optar por outros formatos de apresentação, mesmo dentro da ModaLisboa.
“Tenho muitos projetos a acontecer, clientes que são atores, artistas… É inconcebível estar a produzir uma coleção só por produzir, com coordenados, sapatos… As coisas perdem o valor”, insiste. Em Lisboa, o atelier cresce (em pessoas e maquinaria) e, por estes dias, Constança Entrudo procura um novo espaço. Quer experimentar novas técnicas e aproveitar 2020 para fazer uma residência artística, idealmente fora do país. “Já recebi várias propostas para apresentar em Paris e em Londres, quero aceitar mas de uma forma certa e sustentável”, acrescenta. À apresentar a sua quarta coleção na plataforma Lab da ModaLisboa, este é um momento de viragem para a jovem designer. A moda pode facilmente tornar-se uma caixa e Constança não quer ficar dentro dela.
Menos drástica, mas com o mesmo tom de desafio perante a lógica que impera no calendário da moda, Marta Gonçalves ressuscitou a Hibu e fez dela uma marca mais atenta a novas necessidades de consumo e de sustentabilidade. No segundo desfile desta nova fase, pegou nos básicos de há seis meses, deu-lhes novas cores e usou-os como calço de uma coleção pontuada por peças statement — casacos acolchoados, mangas balão e malhas de aspeto kitsch. Para a designer, o recomeço está a ser gradual. Nos últimos meses, lançou a loja online e ganhou um ponto de venda físico, a loja Les Filles, em Lisboa. O mercado internacional pode ser mais difícil de conquistar, mas a nova Hibu está no bom caminho.
Awaytomars: a criação é um fenómeno à escala global
Um macacão domingueiro, um blazer, uma túnica com cinto — não é novidade que a Awaytomars anda a pegar nos clássicos e a dar-lhes uma volta (e por volta entenda-se reatualizá-los com cortes minimalistas e contemporâneos, cores fortes e color blocking), mas como acontece quase sempre com esta plataforma de design colaborativo, assente numa rede de centenas de criativos que se estende pelos quatro cantos do mundo, os bastidores encerram muito mais surpresas do que a própria passerelle. Neste momento, a marca desdobra-se em projetos, a começar pela própria coleção.
“A gente está reciclando as peças dos nossos consumidores — qualquer coisa que eles mandem, pode ser Primark, pode ser Gucci. O que a gente faz é usar isso no começo do processo de criação, destruindo um pouco as peças e reavaliando como a gente pode reconstruir aquilo dentro da estética da Awaytomars”, explica o designer Alfredo Orobio ao Observador.
Rumo ao desperdício zero e a uma política de reaproveitamento máximo, a marca está ainda a associar-se aos alfaiates de Savile Row, em Londres. Nesta coleção, foram usados tecidos de stocks parados, mas também pequenas sobras de cortes. Das t-shirts, onde os retalhos foram aplicados em composições gráficas, aos fatos completos, reinterpretados ao estilo da marca, a Awaytomars rendeu-se à alfaiataria.
As conquistas não ficam por aqui. Na última ModaLisboa, Alfredo Orobio e Marilia Biasi anunciaram uma parceria com a Missoni. A dupla faz um balanço positivo, o resultado será apresentado na próxima edição, em outubro, momento que poderá contar com a presença da diretora criativa da marca italiana. “A gente passou alguns dias com a Margherita [Missoni] dentro do arquivo. São 60 anos de história. Nas décadas de 60 e 70, eles sempre contratavam artistas para desenhar as estampas e eles têm um acervo de coisas que nem usaram”, conta Marilia. Na base da colaboração estarão três temas do arquivo da marca — um orgânico, um geométrico e um abstrato.
A provar que 2020 será um bom ano para a Awaytomars, a marca foi ainda uma das dez selecionadas para integrar o programa Business of Fashion, Textiles and Technology, que terá um investimento de mais de 90 milhões de euros por parte do governo britânico, com vista a dotar a indústria criativa de tecnologia própria. Neste caso, com apoio da IBM e da Universidade de Cambridge, a marca passará os próximos dois anos a desenvolver ferramentas de cocriação utilizando inteligência artificial.
A roupa, o género e a vida no campo
Quando falamos de moda portuguesa e na construção de uma linguagem sem género, Ricardo Andrez tem a sua quota parte de responsabilidade. Desta vez, o criador quis trazer a questão para o centro da coleção. Com ombros volumosos e cinturas apertadas por corpetes 2.0, explorou a fronteira entre feminino e masculino e baralhou os códigos de vestuário. Para o próximo inverno, apostou ainda em grandes volumes, “uma coisas que nunca tinha trabalhado”, resume. Com a sustentabilidade no topo da agenda, Andrez voltou a usar tecidos provenientes de stocks parados de fábricas.
Para este último dia de ModaLisboa ficou ainda o desfile de Aleksandar Protic. Uma coleção onde predominaram os tons escuros e onde saltaram à vista as construções gráficas e geométricas conseguidas através de volumes. Ninamounah, a marca convidada desta edição, acabou também por desafiar a separação entre vestuário feminino e masculino, partindo do uniforme executivo, desconstruindo-o e sexualizando-o.
A fechar a 54ª edição, Dino Alves revisitou a sua infância no campo e a sua chegada à cidade grande. Natural de Anadia, o criador propôs uma gradual transição de estilos ao longo do desfile, que começou com um folk campestre, onde predominaram o xadres, as flores e os folhos e onde não faltaram as referências a uma educação religiosa. Com o primeiro contacto com a vida urbana, vieram as artes, representadas por peças de street wear num azul e num amarelo eletrizantes. No final, ouviu-se José Cid — “Ontem, hoje e amanhã”, despedida salutar até à próxima edição, em outubro.