Já lá vai mais ou menos um mês que a nossa vida mudou. Para todos os que têm vivido os dias da Covid-19 com a felicidade de ter saúde e o privilégio de poder ficar em casa, muitos hábitos foram reinventados: aulas e reuniões em vídeo-conferência, os móveis da sala arredados para a aula de fitness doméstico, a cozinha transformada em padaria experimental, muito tempo – ainda mais tempo – passado em frente ao ecrã do televisor, computador ou smartphone, na ânsia bipolar de ora saber tudo sobre a pandemia, ora esquecer a pandemia. E claro, ouvir o sermão de Rodrigo Guedes de Carvalho, já que não se pode ir à missa.
Enquanto a televisão em geral subiu para os valores mais elevados do ano, com os portugueses a dedicarem, em média, mais meia hora por dia à velha “caixa mágica”, há fenómenos curiosos. Nos Açores, o direto diário com a atualização dos dados da pandemia na região (o equivalente local à conferência de imprensa diária da DGS e Governo da República), é um caso fascinante de popularidade, com o diretor regional de Saúde Tiago Lopes a inspirar a criação de um grupo de fãs no Facebook que, em poucos dias, já tinha mais de 30 mil membros. A nível nacional, “Como é que o Bicho Mexe”, o direto diário de Bruno Nogueira no Instagram, anda há semanas a pôr 50 mil pessoas a olhar para o telemóvel das onze da noite à uma da manhã.
Para que tenhamos uma ideia: se fosse um canal de televisão, o “Corpo Dormente” de Bruno Nogueira seria o terceiro ou quarto canal mais visto do cabo, ali taco a taco com a TVI24, só batido pela CMtv e pela SIC Notícias e com mais do dobro da audiência média da RTP3. Impressionante? Pode ter a certeza. Se isto vai mudar alguma coisa na forma como se faz televisão e redes sociais em Portugal? Apostamos já aqui uma garrafa de álcool etílico.
De que é que estamos a falar, para os poucos que ainda não viram? Simples: todas as noites, a partir do escritório de casa, Bruno Nogueira vai ligando em direto a um conjunto de amigos via Instagram – Nuno Markl, João Quadros, Salvador Martinha, Nuno Lopes, Beatriz Gosta, Jessica Athayde, João Manzarra, Mariana Cabral, entre outros – terminando sempre com uma atuação de Filipe Melo ao piano. Falam da pandemia, da quarentena, de coisas triviais, de coisas de amigos, e fecham com uma mensagem terna do host Bruno: “Vai correr tudo bem”.
Tem feito companhia a muita gente, nestes dias em que nos sentimos todos uma espécie de refugiados com pijama, tecnologia e entregas em casa, como a velha rádio das madrugadas e estranhamente distante – tão, tão distante – dos oráculos a que nos habituámos em tempos de crise muito mais recentes: os enviados especiais aos cenários de guerra. Sim, Bruno Nogueira é – desculpa, Bruno – o inesperado Artur Albarran da Guerra do Coronavírus. O Carlos Fino da nossa Guerra Mundial no Sofá.
Na verdade, “Como é que o Bicho Mexe” é, voluntária ou involuntariamente, uma reinvenção do late night show: piadas sobre a atualidade a abrir, conversa com convidados, número musical a fechar. De facto, os late nights sempre tentaram simular a intimidade que aqui é real: estúdios maquilhados por cenários que os tentam transformar em salas de estar; canecas, sofás e uma falsa sensação de (não, não de segurança) familiaridade. E se não temos a imagem e o som das palmas e das gargalhadas do público “ao vivo”, tão crítico para o sucesso da fórmula ultra-testada do late night, temos os emojis e os comentários em direto, que tornam ainda mais presente e legível a reação desse público, de algum modo convencendo-o ainda mais de que é parte do espectáculo.
Filipe Melo: “Quando isto começou, a última coisa que me apetecia era tocar piano”
Que terá a televisão de pensar depois disto? (e, na pergunta, podemos incluir também a “televisão” em streaming, uma vez que estes já são números muito apetecíveis e que também não falta notícia de quem ande a trocar a Netflix pelo Bruno & Friends) Em muita coisa. Mas, fundamentalmente, nestas três questões:
a) no quanto se terá desprezado o apreço que teremos sempre por uma boa, velha e simples conversa (e aqui a rádio e a obsessão pelas playlists também têm muito para pensar – mas já tem desde o sucesso das podcasts)?
b) Que fazer ao investimento em meios técnicos, luz, som, gruas, cenários, câmaras x e y, figurinos, maquilhagens, bailarinos, toda a secção encher-o-olho, sabendo que haverá sempre procura pela programação “shiny floor”, que faça sonhar, mas que há uns tipos que conseguem uma fatia significativa de público com a câmara do telemóvel, a luz da cozinha e remelas nos olhos?
c) Que sentido ainda faz a medição pré-histórica das audiências quando, hoje, é possível ver o número exato de “telespectadores” em permanência, no canto do ecrã, e até ir reagindo a ele (o que é terrivelmente cruel e perigoso, mas que dá tema para toda outra crónica)?
Bruno Nogueira: “A primeira coisa que me dizem sempre é ‘epá, não há muito dinheiro’”
É claro que há aqui um certo carácter de excecionalidade. Estamos num momento muito peculiar no tempo (esperamos). Parte do sucesso de “Como é que o Bicho Mexe” deve-se decerto a este sentimento de estarmos todos à volta da fogueira, encontrando conforto em partilhar as mesmas histórias e perceber que está ali uma data de gente famosa que, afinal, vem passando precisamente o mesmo do que eu (e esse fator de identificação é decisivo desde o início da história do audiovisual, das personagens da ficção aos cromos da reality TV). Mas está muito enganado quem achar que é só isso, que é puramente circunstancial. Isto veio para ficar. E voltamos já aqui a apostar aquela garrafa de álcool etílico.
Se é incrível? Não é. As falhas do Instagram e na internet (da nossa ou da deles) criam interrupções frequentes ou delays que nos põem a ver o João Manzarra a falar com a voz da Jessica Athayde e que nos põem a “mudar de canal”. E, se a evolução tecnológica vai ultrapassar isso em breve, há uma coisa em que a velha televisão podia ajudar desde já: a economia do tempo. A hora e dez que “Como é que o Bicho Mexe” tem a mais do que o que lhe seria provavelmente dado num canal generalista dá espaço a muita conversa sem interesse, fútil ou vulgar. Ninguém é brilhante todos os dias durante duas horas, muito menos àquelas horas, e, ainda que o lado mais real e quotidiano do “programa” seja do que de melhor tem para dar, a verdade é que saber se o namorado da Jessica Athayde passa esta semana em casa ou na quarentena do outro filho, é igual ali ou nas páginas cor-de-rosa do “Correio da Manhã” e que já sei muito mais dos falos do João Quadros, do Markl e do Nuno Lopes do que queria alguma vez saber. Mas, quem sabe?, esta coisa do balneário intelectual ainda cria uma corrente artística.
Mais de 40 mil portugueses entopem rádio no Pólo Norte. Um insólito do isolamento
Ou seja, há demasiado Dostoievski para ler. E, se isto soar demasiado pedante, também há demasiada Netflix para ver. Há cada vez menos tempo e cada vez mais produtos culturais para consumir. Devemos selecioná-los a um e a outros – tempo e produtos – criteriosamente. Não por acaso a pianada final de Filipe Melo é, frequentemente, o melhor momento do direto. Um Vitinho de luxo que anda a mandar 50 mil pessoas para a cama. Um luxo mesmo – e obrigado por isso.
Mas Bruno Nogueira também não tinha/tem certamente a pretensão de estar a fazer uma coisa incrível. Está a fazer uma coisa boa que está a ter resultados incríveis. E é preciso tirar-lhe o chapéu.
Mantenham-se em casa. Façam muito pão, muito exercício e muitas videochamadas. E continuem a ver os vossos preferidos nos ecrãs que quiserem. Vai correr tudo bem.