Por estes dias é muito possível que um amigo já vos tenha enviado “JU$T”, a faixa em que os Run the Jewels oferecem palco a Pharrel Williams e a Zack de la Rocha, possivelmente a dupla mais inesperada desde que Snoop Dog rapou ao lado de Mickael Carreira. A faixa vinha, provavelmente, acompanhada de uma mensagem simples, mas precisa:

“MALHÃO, BRO, MAS QUE MALHÃO”.

Se me é permitido o conselho: tratem bem esse amigo, mantenham-no por perto pelo resto da vida, que é de amigos assim que precisamos – e não só porque “JU$T” é malhão grosso, o tipo de faixa explosiva que porá festivais inteiros aos saltos e encontrões e milhões a despejarem corações nos vídeos que os festivaleiros vão partilhar da performance no Instagram. É porque RTJ4 tem uma dezena de malhões assim ou superiores.

Puxem dos vossos cadernos de anotações, das folhas de Excel, ide ao recesso da vossa memória: quem mais faria uma faixa como “Pulling the pin” (décima de RTJ4), em que à voz sofredora da diva soul Mavis Staples se sobrepõe à guitarra cheia de drama de Josh Homme (dos Queens of the Stone Age), enquanto coros lacrimosos orbitam em redor? Mavis canta “There’s a granade in my heart” e algures Killer Mike (que é, com El-P, os Run the Jewels) rappa “Fuck the political, the mission is spiritual”.

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[“JU$T”:]

Mavis Staples não está nesta faixa por acaso – nascida numa família de cantores, fez parte das Staple Singers, que (sim) era a banda da família, destacando-se pela sua extraordinária voz, apropriada ao gospel; aos 16 anos já era uma estrela, graças a “Uncloudy Day”, em que cantava “Well, well, well, Lord, they tell me I got a home beyond the skies”. Mavis tornou-se um ícone do movimento dos direitos sociais dos anos 50 e 60 , Dylan apaixonou-se por ela e pediu-a em casamento.

Aqui ela canta:

“Like right and wrong can’t be defined
There’s a grenade in my heart
And the pin is in their palm
There’s a grenade

There’s a grenade
A grenade in my heart.”

“And the pin is in their palm”. Esta frase não está ali por acaso: no mundo dos Run the Jewels a nossa vida depende sempre de alguém – alguém que tem uma arma na mão, alguém que pode causar o Mal quando menos se espera. Mas a presença de Mavis Stpales, o tom de melancolia do tema, e aquela linha, “Fuck the political, the mission is spiritual”, dizem-nos que os Run the Jewels acrescentaram algo ao seu mundo: onde antes havia raiva, alucinação, violência, demência, agora há também tristeza pelo estado do mundo – como se eles tapassem a cara com as mãos, pensando que o mundo se tornou na mais agressiva das suas canções e não era suposto que fosse assim.

É preciso esclarecer: Run the Jewels 4 é o grande disco deste ano e o primeiro que parece mapear a distopia em que vivemos com uma precisão tal que espelha a disfuncionalidade do mundo neste exato momento. A ironia é que não foram os Run the Jewels que finalmente fizeram um álbum que respira o esprit du temps – não, os discos deles sempre foram assim; os tempos é que por fim se puseram de acordo com o universo que os RTJ sempre criaram nos seus discos: uma alucinação sombria, em que todos se destroem mutuamente e nada faz sentido.

Mas há diferenças: se até agora, nos três discos anteriores, os Run the Jewels, sempre apresentaram uma dose de êxtase semelhante à de RTJ4 – e com esta exata fórmula de um branco e um negro zangados a rappar demencialmente por cima de suas batidas pesadas – desta feita o botão do volume parece ter sido rodado até ao 11; a lupa com que analisavam cada beat ao detalhe parece ter sido polida ao ponto de cada um destes beats merecer ser alvo de tese de doutoramento; tudo é perfeito, tudo encaixa: os Run the Jewels eram uma banda de nicho e com RTJ4 vão deixar o palco secundário dos Primaveras e entrar pelo principal, à hora de fecho, com o público de joelhos e já rendido (certo, em 2017 estiveram no palco principal desse mesmo festival, no Porto, mas vocês entendem o que quero dizer).

[“Ooh LA LA”:]

E ocorre-me que quem chegou até este ponto do texto e não soubesse nada sobre os Run the Jewels continua sem saber – peço desculpa, dormi pouco, acordei muito cedo, ainda não tomei café: os RTJ são um super-grupo de rap constituído pelo rapper Killer Mike e o rapper/produtor El-P. Começaram por colaborar em faixas um do outro até que uniram esforços – já eram pequenas estrelinhas mas o sucesso críticos dos três discos que criaram juntos tornou-os aquele tipo de semi-estrela que tem uma boa casa, come em bons restaurantes, tem milhares de seguidores mas não casaria com Beyoncé.

E o que há de mais espantoso na obra deste duo é que melhoram de disco para disco: ouça-se “goonies vs ET”, a 5ª faixa de RTJ$: começa com um baixalhão ameaçador (que parece ter saído da BSO de um filme de terror ou de tiros) e depois, do nada, entra um beat do outro mundo (com aquela grandeza de arena quase Chemical Brothers), que provoca no mais pacato académico vontade de escaqueirar a mobília ao biqueiro (uma tarefa interessante, nos próximos tempos, será a de avaliar o grau de hematomas que resultará dos encontrões entre o público dos clubes, a cada vez que um DJ passe o tema).

No campeonato malhão com beat pesadíssimo  há muito por onde escolher: “Holy calamafuck”, a quarta faixa do álbum, lenta, venenosa, cheia de arranjos mínimos em fundo, também é candidata, bem como “Yankee and the brave (ep. 4)”, que abre o disco com um beat tão brutal que é capaz de fazer Lázaro deixar novamente a sua misantropia, sentir o seu coração a bater acelerado e mexer as perninhas para juntar-se ao povo que dança.

Talvez eles apenas se tenham tornado melhores; talvez tenham decidido que era hora de ganhar dinheiro – a verdade é que os beats estão mais precisos, são mais variados, bem como os arranjos (guitarras, coros, todo o tipo de percussão); tudo isto pode apenas dever-se à mudança para a BMG, o tipo de editora com dinheiro para os enfiar num estúdio semanas a fio até saírem de lá com pelo menos 3 ou 4 temas que garantam airplay. É difícil não notar que agora há mais variedade em cada tema.

[“Walking in the Snow”:]

Mas a agressividade anterior mantém-se e o pendor político idem: “Walking in the snow” é sujo, tem uma guitarra pesadíssima, apitos em redor, e uma linha tenebrosa sobre o que é a vida de um pobre:

“Funny fact about a cage, they’re never built for just one group
So when that cage is done with them and you still poor, it come for you.”

Não faço parte daquele grupo de pessoas que diz que não há coincidências, aquele tipo de pessoas que diz que a Covid é a forma que a natureza tem de nos ensinar que estamos a viver mal (até porque sempre houve epidemias, só não se espalhavam tão depressa). É apenas uma coincidência que o álbum com mais apelo de massas RTJ tenha saído escassos dias depois da morte de George Floyd às mãos da polícia, uma coincidência que torna a distopia social de RTJ4 ainda mais urgente.

Mas no fundo não é bem uma coincidência – com tanto negro morto de forma injusta, com tanto líder narcísico e proto-fascista a provocar cisão entre os povos, era apenas uma questão de tempo até um disco dos Run the Jewels sair no exato momento em que o mundo se tornou na alucinação que sempre esteve presente nos discos deles.