O Tribunal de Contas aponta insuficiências na publicação e comunicação dos contratos públicos efetuados ao abrigo do regime legal que dispensou a fiscalização preventiva para assegurar uma resposta mais rápida às necessidades criadas pela pandemia. Houve contratos que não foram comunicados ao Tribunal, outros não foram publicados no portal Base. Para além da obrigação legal de publicação dos contratos neste portal, a lei que isentou do visto prévio contratos iguais ou superiores a 35o mil euros estabelece que estes devem ser comunicados ao Tribunal no prazo de 30 dias.
Os contratos que ficaram de fora da fiscalização preventiva do Tribunal de Contas, por causa da exceção legal criada para responder à pandemia, ascenderam a 295,3 milhões de euros, o que representa quase 80% de toda a despesa autorizada entre meados de março e final de maio. Em causa estão 184 “contratos Covid-19” de valor igual ou superior a 350 mil euros, num universo de mais de 5.500 contratos, de acordo com uma auditoria divulgada esta terça-feira de acompanhamento dos contratos abrangidos pelo regime de exceção previsto na lei 1-A/2020.
A auditoria de acompanhamento aos chamados “contratos Covid-19” refere a título de exemplo que, das 17 adjudicações promovidas pela empresa pública da saúde, a SPMS — Serviços Partilhados do Ministério da Saúde — e que mobilizaram 40 milhões de euros de despesa — nove contratos representando 26,6 milhões de euros, não foram publicados no Portal Base, apesar de terem sido remetidos ao Tribunal de Contas.
Entre estas adjudicações estão vários contratos para a compra de ventiladores ou consumíveis para estes equipamentos, a maioria dos quais feitos com empresas chinesas. Aliás, o maior contrato feito pela SPMS para a aquisição destes equipamentos — 10,8 milhões de euros para 243 ventiladores com a Guangdong H&P Import and Export — não foi publicado. Esta empresa não surge assim na lista das entidades privadas que obtiveram contratos de valores mais avultados.
Esta lista é liderada por duas empresas de saúde privada, ligadas à distribuição de produtos farmacêuticos, a GLSMED Trade, do grupo Luz Saúde, e a FHC, um grupo de distribuição e logística de Mortágua que detém os laboratórios Basi e que é controlado por Joaquim Matos Chaves e Luís Gonçalves Simões. A lista inclui ainda a empresa de tecnologias de informação, ITEN Solutions, a empresa têxtil Enerre, a Raclac, que produz máscaras e produtos de proteção descartáveis, a Quilaban, empresa de diagnósticos e testes de Sintra que tem como acionista João Cordeiro, antigo presidente da ANF, e a empresa chinesa fabricante de ventiladores, a Beijing Sino Roneo Corporation. No top está ainda a Azinor, grupo que opera em vários setores, para além da área farmacêutica e hospitalar, e que detêm os hotéis Sana. A Quilaban foi a empresa que conseguiu o maior número de contratos.
A auditoria cruza ainda os maiores valores contratados por entidade pública e por entidade beneficiária concluindo que a Direção-Geral de Saúde celebrou 10 contratos que totalizaram 66,155 milhões de euros com as duas entidades a quem foram adjudicados os maiores volumes financeiros, a FHC Farmacêutica e a GLSMED Trade.
O Tribunal detetou ainda a existência de preços por unidade distintos pelo mesmo equipamento. Por exemplo, o custo de aquisição de máscaras cirúrgicas variou entre 0,49 euros e 2,5 euros por unidade e o das viseiras oscilou entre 2,5 e 7,5 euros. Esta auditoria intercalar não avalia as razões para estas flutuações, mas admite vir a fazê-lo em análises futuras.
As conclusões do relatório agora conhecido foram “retiradas da análise dos dados obtidos sem se proceder a qualquer apreciação de legalidade ou mérito dos respetivos procedimentos e contratos”, o que deverá acontecer no futuro. Alguns contratos feitos com ajustes diretos na área da saúde em tempos de pandemia já suscitaram dúvidas.
Como seria de esperar, as aquisições de equipamento médico apresentam o maior montante (cerca de 145 milhões de euros), representando 38,6% do total. Os 15 maiores contratos totalizaram 136,7 milhões de euros, mais de um terço do valor total adjudicado neste período, foram quase todos entregues pela Direção-Geral de Saúde (DGS), através de ajuste direto e para a contratação de serviços ou equipamentos de resposta à pandemia, entre ventiladores, máscaras e material de proteção.
Foram adjudicados 31 contratos acima dos dois milhões de euros, mas o Tribunal de Contas destaca os cinco contratos de mais de nove milhões de euros que representam 25,8% de toda a despesa feita sem a fiscalização preventiva. Todos estes contratos foram feitos no setor da saúde, um pelos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde (SPMS) e os outros pela Direção-Geral de Saúde (DGS). A DGS foi responsável por 34 procedimentos, que representam em número 0,6%, mas em valor correspondem a um terço do total no montante de 121 milhões de euros. A DGS e a SPMS juntas adjudicaram pouco mais de 162 milhões de euros.
Na lista dos maiores contratantes seguem-se os principais hospitais públicos, Lisboa Norte (inclui o Santa Maria), Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, Hospital de São João (Porto), mas também a Administração Central de Saúde. De destacar ainda os valores adjudicados pelas autarquias, com Cascais a liderar as despesas — 9,8 milhões de euros — seguida de Lisboa — 4,4 milhões de euros — e Oeiras — 3,2 milhões de euros. O contrato mais avultado, de 22,2 milhões de euros, foi para o licenciamento de software da Microsoft adjudicado pela empresa pública do setor da saúde, a SPMS .
A grande maioria destes contratos, cerca de 99,1%, foi entregue por ajuste direto, regime geral e regime simplificado, correspondendo a 80% da despesa total. Este tipo de procedimento foi justificado, sobretudo, na medida do estritamente necessário e por razões de “urgência imperiosa”. O Tribunal admite que esta razão terá sido a justificação para contratos no valor de 243,7 milhões de euros.
Para além de falhas na comunicação de alguns contratos, nomeadamente sobre prazos e locais de execução, houve várias adjudicações que não foram comunicadas no Portal Base, como obriga a lei da contratação pública.
A análise concluiu que mais de metade dos contratos públicos feitos neste período foram inferiores a cinco mil euros, enquanto apenas 1% têm um preço acima de um milhão de euros. Nas ilhas, os maiores contratos foram efetuados pelo Hospital de Santo Espírito na Terceira (Açores) e pelo Serviço de Saúde da Madeira, ambos acima de 1,5 milhões de euros.