Estão desde esta quarta-feira em prisão domiciliária todos os responsáveis do porto de Beirute que, entre junho de 2014 e a atualidade, “tenham tratado dos assuntos relativos ao armazenamento do nitrato de amónio, à sua vigilância e à respetiva documentação”, anunciou o Ministro da Informação Manal Abdel Samad. A medida surgiu apenas um dia depois das duas explosões no porto da capital libanesa que deixaram um rasto de destruição na cidade e provocaram pelo menos 157 mortos  e cinco mil feridos — e está a revoltar a população, diz esta quinta-feira a BBC.

Depois de se ter apressado a afirmar que as explosões, ao que parece provocadas por 2.750 toneladas de nitrato de amónio armazenadas naquele local há seis anos, após terem sido confiscadas em 2013 a um navio com bandeira moldava, que seguiria para Moçambique e teve de parar por problemas técnicos, tinham sido acidentais, o governo de Hassan Diab, que já tinha garantido que os responsáveis seriam “severamente punidos”, começou por apontar o dedo às autoridades portuárias. Entretanto, ao fim da manhã desta quinta-feira, foram também detidos, por suspeitas de negligência, três funcionários que alegadamente soldaram um buraco na porta do Bloco 12, o contentor onde estava guardado o químico.

Problema: tanto o chefe do porto de Beirute como o responsável pela autoridade aduaneira garantiram aos meios de comunicação locais que por várias vezes ao longo dos últimos anos solicitaram formalmente a remoção ou venda do químico, usado como fertilizante mas potencialmente explosivo, daquele local, por motivos de segurança. Hassan Koraytem, Director-Geral do porto, disse mesmo ao canal de televisão OTV que foi um tribunal a decidir que o nitrato de amónio fosse ali guardado num armazém — e que foi nessa altura que os responsáveis ficaram a saber que o produto era perigoso, “mas não a este ponto”.

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Exatamente por isso, noticia a BBC, tem subido de tom a contestação contra o governo, com muitos libaneses a preferirem falar em corrupção, negligência e má-gestão em vez de em acidente. Sendo que não são sequer os únicos: tanto a Amnistia Internacional como a Human Rights Watch já vieram pedir uma investigação independente às causas da explosão. “Temos sérias preocupações sobre a capacidade do poder judicial libanês para conduzir, por conta própria, uma investigação credível e transparente”, alertou a Human Rights Watch em comunicado divulgado esta quinta-feira.

Apesar de o governo libanês ter rapidamente rotulado o sucedido como acidente, desde as primeiras horas que têm vindo a público outras teorias, que sugerem que as explosões podem ter sido provocadas por um ataque militar — logo na terça-feira, Felipe Pathé Duarte, especialista em assuntos de segurança e política internacional, tinha salientado à Rádio Observador os vários argumentos por que uma ação intencional não devia ser descartada.

“Devemos considerar o que se passa neste momento no Líbano, que atravessa uma crise sem precedentes, em termos financeiros, sociais, políticos. E essa crise está a pôr ao de cima aquilo que define política e socialmente o Líbano, que é um país de permanentes tensões sectárias, particularmente entre muçulmanos, drusos, cristãos maronitas… Isso marca o Líbano e a crise está a pôr ao de cima estas tensões”, começou por observar o analista.

“Depois, coincidentemente ou não, esta semana sairá o julgamento, apoiado pelas Nações Unidas, que tem a ver com o atentado que o ex-primeiro-ministro Hariri sofreu em 2005, culminando na sua morte; e aparentemente o responsável por esse atentado terá sido o próprio Hezbollah, um movimento social, terrorista, com forte impacto nas decisões do Líbano, nomeadamente na zona sul do país, onde é uma espécie de braço armado do Irão para aquela região levantina. Neste momento estão a ser julgados à revelia quatro ou cinco elementos do Hezbollah, que naturalmente não reconhece sequer o tribunal”, concluiu.

O veredito sobre o homicídio de Rafik al-Hariri, morto há 15 anos num atentado à bomba numa zona próxima à das explosões desta terça-feira, estava previsto para esta sexta-feira, dia 7 de agosto. Entretanto, informou o tribunal especial que está a julgar o caso em Haia, nos Países Baixos, por respeito às vítimas, foi adiado e só deverá ser conhecido a 18 de agosto.

É só mais uma acha para a fogueira de dúvidas que rodeiam o incidente de 4 de agosto, e que foi subitamente alimentada esta quinta-feira com a revelação por parte do Comando do Exército Libanês de que terão sido detetadas “13 violações aéreas hostis” por parte de Israel, entre as 13h45 de terça-feira e as 14h15 do dia seguinte, sobre regiões próximas de Beirute. Mas há mais.

1. Quem aponta o dedo a Israel e porquê?

Desde a primeira hora que o governo de Israel se apressou a dizer não ter nada a ver com o incidente, com Gabi Ashkenazi, ministro dos Negócios Estrangeiros, a garantir que as explosões tinham sido “um acidente causado por um incêndio” e, mais do que isso, a deixar um aviso aos formuladores de teorias alternativas. “Sugiro cuidado com a especulação, não vejo qualquer motivo para não acreditar nas informações de Beirute”, disse logo na terça-feira ao fim do dia ao Canal 12 israelita.

A verdade é que a especulação não parou — ou não estivessem frescas as memórias dos bombardeamentos do verão de 2006 entre Israel e o Hezbollah, que terão custado a vida a pelo menos um milhar de libaneses, a maioria civis, feito mais de quatro mil feridos e deslocado cerca de um milhão de pessoas.

Logo no dia das explosões, Firas Maksad, especialista em geopolítica do Médio Oriente baseado em Washington, revelou no Twitter, com a hashtag “especulações”, que vários amigos seus em Beirute lhe tinham garantido ter ouvido jatos israelitas antes e depois das explosões.

Esta quinta-feira, a informação divulgada pelo exército libanês a dar conta de uma série de voos não autorizados por parte de Israel no espaço aéreo nacional no dia das explosões e no seguinte — incluindo um “voo circular sobre o mar entre Tiro e Naqoura, Beirute e seus subúrbios” — parece consubstanciar a teoria. Ainda assim, em momento algum do comunicado divulgado esta quinta-feira, o Comando do Exército Libanês relaciona as violações do espaço aéreo com as explosões.

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Mais: para além do governo israelita, que além de negar qualquer envolvimento ofereceu ajuda humanitária ao Líbano, também Teerão terá afirmado, revelou no Twitter o jornalista Arash Azizi, que não considera as  explosões obra “de Israel ou de qualquer outro país estrangeiro”.

Como Michael Peck, especialista em aeronáutica e defesa, explicou na Forbes, apesar de ter toda a capacidade para isso, o mais provável é mesmo que Israel não esteja por trás do que aconteceu esta terça-feira em Beirute. E um dos sinais será o facto de nem o governo libanês nem o Hezbollah, “que nunca tiveram pruridos em culpar o arqui-inimigo Israel por quaisquer infortúnios”, terem acusado governo de Netanyahu.

Por outro lado, explica o analista, para além de a lutar contra o coronavírus, Israel está em estado “caótico” no que diz respeito à política interna — já para não falar nos 150 mil rockets que o Hezbollah terá apontados ao país e que deverão funcionar como um “forte desincentivo” para qualquer ação mais violenta.

Embora Israel tenha vindo a ser capaz de conduzir ataques na Síria sem agravar as tensões, Jerusalém está bem ciente de que atacar o Líbano poderia resultar numa chuva de foguetes e ataques de comandos por parte do Hezbollah, forçando uma sangrenta invasão israelita do sul do Líbano”, explica.

2. O que tem o Hezbollah a ver com o porto?

Apesar de não existirem provas que liguem o grupo xiita libanês pró-iraniano às explosões, o que não faltam, salienta o Washington Post esta quinta-feira, citando fontes oficiais do governo americano, são relatórios sobre a utilização do porto pelo Hezbollah, para o “contrabando de mísseis e de outras armas”.

Assim que as explosões foram noticiadas, começou a circular a informação de que teria sido atingido um depósito de armas do Hezbollah. “A explosão de Beirute está numa área conhecida por ser utilizada pelo Hezbollah para o seu projeto de mísseis guiados de alta precisão e longo alcance, a que Israel chama publicamente uma linha vermelha. Não tenho conhecimentos específicos, mas ficaria surpreendido se os explosivos que detonaram não estivessem associados a esse projeto”, escreveu no Twitter o jornalista Noah Pollak.

“Relatos não confirmados de que Israel pode ter eliminado as instalações de armamento do Hezbollah”, fez coro Firas Maksad na mesma rede social.

De acordo com as fontes oficiais citadas pelo Washington Post, a relacionar o movimento liderado por Hassan Nasrallah com as explosões, estará ainda o “interesse de longa data” que o Hezbollah tem mostrado pelo nitrato de amónio, que já por várias ocasiões terá tentado adquirir. O facto de estarem a circular vídeos, noticiou o Jerusalem Post, em que Nasrallah ameaça explodir o porto de Haifa exatamente com o mesmo químico, explicando que o impacto seria idêntico ao de um ataque nuclear, também veio alimentar ainda mais a especulação.

É possível, por exemplo, que a Força Aérea israelita tenha visado o armazém de Beirute sem se aperceber da quantidade de material explosivo ali armazenado”, concedeu Michael Peck no artigo que publicou na Forbes. “Mas atacar um bastião do Hezbollah sem informação fidedigna e atualizada seria invulgarmente desleixado para os israelitas.”

3. Quem mais colocou a hipótese de ser um ataque militar?

Donald Trump foi o primeiro Chefe de Estado a dizer publicamente que as explosões, oficialmente consideradas acidentais, pareciam ser obra de “um ataque terrível”.

“Deixem-me começar por enviar as mais profundas condolências da América ao povo do Líbano, onde relatórios indicam que muitas, muitas pessoas foram mortas e várias centenas ficaram gravemente feridas numa grande explosão em Beirute”, disse o Presidente norte-americano na terça-feira. “As nossas orações vão para todas as vítimas e suas famílias. Os Estados Unidos estão prontos para ajudar o Líbano”.

Os restantes líderes mundiais têm sido cautelosos sobre o assunto, e nem um fez eco das palavras do homónimo americano. Esta quinta-feira Emmanuel Macron foi o primeiro a visitar Beirute, para oferecer auxílio mas também pedir reformas, nomeadamente para resolver a grave crise económica em que o país se encontra.

4. Por que motivo está a levantar tantas dúvidas a explosão associada ao nitrato de amónio?

Um sal utilizado como fertilizante, acessível em qualquer farmácia agrícola, o nitrato de amónio não é um explosivo mas pode ser usado como tal, explicou esta quarta-feira ao Observador o capitão João Cordeiro, comandante do Centro de Inativação de Explosivos e Segurança em Subsolo da Unidade de Intervenção da GNR.

Inofensivo sozinho, explosivo com outras substâncias e com calor. O que é o nitrato de amónio, que estará na origem das explosões no Líbano?

Vários ataques terroristas — o perpetrado em 1995 por Timothy McVeigh contra o edifício federal de Oklahoma City, que provocou 168 mortes, tem sido o mais citado nos últimos dias pela imprensa — foram já feitos com recurso a esta substância química, portanto a questão que se coloca não é se é possível, mas como.

Obviamente que têm de ser adicionados outros ingredientes para que a substância, que por si só não é explosiva, se transforme numa explosiva ou que origine uma mistura explosiva”, explicou o capitão João Cordeiro.

Apesar das vozes que têm gritado (sobretudo nas redes sociais, frequentemente com várias dezenas de milhares de partilhas, como aponta a BBC) “bomba atómica” ou “ataque com mísseis”, os especialistas internacionais têm considerado de forma unânime que as explosões de Beirute são consonantes com o armazenamento de 2.750 toneladas de nitrato de amónio. “Quando há uma explosão normalmente há um de dois tipos de fumo, preto ou branco. Se for preto, estamos perante explosivos primários — do tipo utilizado militarmente ou em carros-bomba terroristas”, explicou à Sky News Chris Hunter, especialista em explosivos, testemunha no julgamento sobre a morte do ex-primeiro-ministro libanês Rafik al-Hariri.

“Se virmos fumo branco isso normalmente é consistente com aquilo a que chamamos explosivos secundários. Pareceu-me que aquela cor vermelha profunda era de um incêndio, por isso poderá ter havido materiais queimados, mobiliário ou algum tipo de corante ou tinta. Poderá também ter resultado da quantidade de pó na área”, acrescentou ainda o especialista.

A primeira coisa que pensei quando vi esta enorme explosão foi que é muito pouco provável, numa área como aquela, que tenha sido provocada por pólvora ou munições. É mais consistente com uma explosão secundária confinada, algo como uma explosão de fogo-de-artifício”, concluiu.

À Rádio Observador, Mário Calvete, professor de Química da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, explicou que, depois de analisar as imagens da explosão, também ficou com a ideia de que estaria a decorrer um incêndio nas proximidades do local e admitiu que possa ter sido essa a origem da explosão das 2.750 toneladas de nitrato de amónio. Esta substância, detalhou, quando em contacto com outras que sejam “mais quentes”, pode ser responsável pela produção de gases, o que, a acontecer num espaço fechado, como o Bloco 12, pode ser “suficiente” para provocar a destruição a que se assistiu esta terça-feira.

“Se estiverem todas as janelas abertas, o gás é relativamente inócuo, mas se as janelas estiverem fechadas, ganha uma concentração que basta uma pequena faísca para tornar o gás explosivo”, exemplificou, comparando, o professor.

5. Que outras teorias circulam nas redes sociais?

Fotografias de Benjamin Netanyahu a apontar para o local exato onde esta terça-feira aconteceram as explosões, numa Assembleia Geral das Nações Unidas, em 2018, estão a circular nas redes sociais como “prova” de que que Israel é responsável pelo incidente.

As imagens, explica a BBC, são verdadeiras, de Beirute, e nem sequer foram manipuladas — só não mostram o porto de Beirute, mas uma zona diferente da capital libanesa onde, acusou nessa ocasião o primeiro-ministro israelita, o Hezbollah esconderia um depósito de armas. O porto, onde esta terça-feira se registaram as explosões, fica a vários quilómetros a norte do “local 1”, destacado no mapa de Netanyahu.

Também de acordo com a BBC, grupos de extrema-direita estarão a partilhar no Facebook a teoria de que as explosões são o resultado de uma pretensa “guerra entre o governo [libanês] e o sistema bancário central“.

Segundo a BBC, entre os disseminadores da teoria da conspiração estão os defensores da QAnon, a teoria da conspiração, também ligada à extrema-direita, que defende que existe um plano secreto, movido pelos “pedófilos adoradores de Satã que compõem a elite no governo, nos negócios e nos media”, para acabar com Donald Trump.

6. Com que outras explosões se pode comparar a de terça-feira?

O rendimento de uma explosão (que é como quem diz a carga de energia libertada por ela) é convencionalmente medido em quilotoneladas — sendo uma quilotonelada (kt) igual à quantidade de energia libertada por uma explosão de mil toneladas de TNT.

A partir desta unidade de medida, e apesar de ainda não ter sido determinada ao certo a quantidade de energia libertada pelas explosões de terça-feira em Beirute, têm sido feitas várias comparações com outras bombas conhecidas, partindo do princípio de que 2.750 toneladas de nitrato de amónio serão equivalentes a 1.800 toneladas de trinitrotolueno.

Vários especialistas calculam que as explosões de Beirute, que provocaram ondas sísmicas com uma magnitude equivalente a um terramoto de 3,3 na escala de Richter, deverá ter tido um rendimento entre 1 e 2 quilotoneladas — a bomba atómica que devastou Hiroshima teve um rendimento estimado entre os 13 e os 18 Kt, a que atingiu Nagasaki entre os 19 e os 23 kt.

A GBU-43/B, conhecida como “Mother of All Bombs”, a maior bomba convencional (não nuclear), tem um poder explosivo de 11 toneladas de TNT, o que significa que a explosão de Beirute foi dez vezes mais forte do que qualquer uma das suas detonações.