Comprei o livro Normal People no verão passado, numa viagem à Irlanda (RIP viagens ao estrangeiro, eterna saudade). Era quase impossível não o fazer, dada a omnipresença da obra de Sally Rooney, visível em todas as montras, todas as livrarias, todos os feeds. A jovem escritora irlandesa despontava assim como um enorme fenómeno, catapultado com o romance de estreia Conversations With Friends (de 2017) e cimentada então com um regresso aclamado em vozes unânimes (Normal People saiu em 2018). Li o livro num trago, como não fazia há muito. Admirado com a minha voracidade, o meu marido perguntou-me “bom, adoraste, certo?”. Respondi que não sabia, mas que achava que não, que não tinha gostado lá muito.
A grande questão de Normal People, seja em livro (por cá editado pela Relógio D’Água com o nome Pessoas Normais) seja na série agora estreada pela HBO (está disponível a partir desta quarta-feira, 12 de agosto), é que vive às cavalitas de duas personagens com as quais me foi muito difícil criar empatia. Marianne Sheridan e Connell Waldron são um casal que o vai sendo e deixando de ser, repetidas vezes. Porquê? Olhem, nem percebi muito bem. Aliás, acho que foi isso que marcou o compasso rápido da minha leitura: querer perceber porque raio é que aquele namoro é sempre tão complicado. Aqui não há Montéquios nem Capuletos a separar os enamorados, apenas os fantasmas das suas próprias cabeças que os impedem de viver uma relação sem a tornar profundamente tóxica.
Ambos os protagonistas são colegas de liceu e vivem numa pequena cidade rural chamada Sligo. Marianne é filha de uma família abastada em constante litígio e é o alvo de gozo e bullying de toda a escola, tendo treinado uma acidez de gatilho rápido para se defender. Já Connell é filho de uma modesta empregada de limpeza e é não só um desportista aclamado no seu liceu como é também o aluno mais promissor, popular entre os pares e entre os professores. A relação entre ambos, que começa logo como profundamente sexual (as cenas de sexo são longas e realistas, mostrando as tais “pessoas normais” que vêm escritas na embalagem), é tão inesperada para as castas daquele sistema escolar que Connell insiste que ambos a mantenham em segredo. Logo de arranque estamos perante uma sinergia nada saudável e nada justa.
[o trailer de “Normal People”:]
https://www.youtube.com/watch?v=b5OcZh5h5GQ
Não me interpretem mal: a toxicidade das relações e a multa do excesso de bagagem emocional são temas relevantes e dos quais infelizmente reconheço alguns dos trejeitos. E pessoas moídas pela existência são tão passíveis de ser gostadas como as outras, caramba. Mas Marianne e Connell mergulham numa autocomiseração e numa busca constante de problemas que me é difícil perceber. Gostarem um do outro nunca chega, nunca surge como um tijolo para construírem aquela casa.
Porém, uma das coisas que torna a série mais robusta do que o livro (fenómeno raro) é o excelente casting de dois jovens atores, que trazem mais realismo e empatia para aquela representação geracional. Daisy Edgar-Jones e Paul Mescal, pouco mais do que estreantes, trazem uma naturalidade e simultaneamente uma aspereza às personagens que torna a convivência com elas muito mais apetecível. Mescal está nomeado para um Emmy e não é caso para menos.
Como obra extremamente geracional que é, talvez a minha grande questão com “Normal People” seja mesmo a minha idade. Quer em livro quer em streaming, é um relato profundamente millenial. E antes que me revirem uns olhos e venham com um “OK, boomer” – oficialmente, ainda tenho um dedinho nos millenial, já que o seu leque de idades vai dos nascidos em 1981 (o meu ano) aos nascidos em 1996. Sally Rooney é da colheita de 1991. E talvez esta angústia seja característica desta geração e o sucesso do livro e da série venham de um reconhecimento que é efetivo, eu é que simplesmente não o domino. De Mem Martins dos anos 90 para a Sligo do início da década vai um mundo de diferença, pelos vistos. Até porque, passando-se a história durante o secundário e a universidade dos protagonistas, a escola e o modo como esta funciona acabam por ser muito importantes para a progressão das personagens, e estamos aqui perante características e dinâmicas muito particulares às ilhas britânicas.
Dizer que esta adaptação para série é melhor do que o livro não terá de ser entendida como uma crítica às capacidades de Rooney, já que esta teve muita mão no resultado final da série. Não só co-escreveu os primeiros seis episódios (são 12 no total), como a série é recorrentemente o livro ipsis verbis. Mesmo em romance, a autora tem uma voz muito cinematográfica, no sentido de que cumpre essa grande máxima do guionismo: “show, don’t tell”, mostra as tuas personagens a agirem e a falarem em vez de entrares em grandes exposições e descrições sobre o seu estado de alma.
Noutra fase da história do audiovisual, “Normal People” teria sido provavelmente um filme e não uma série de televisão. E a passagem de um livro com 280 páginas que tem só uma narrativa bastante linear para 12 episódios poderia ter corrido desastrosamente, num mastigar inane e repetitivo. Curiosamente, a série consegue aguentar-se bem entre o ritmo e a contemplação, mérito de diálogos competentes e do tal casting acertado. Não é uma “Casa de Papel”, com mil coisas a acontecer, cheia de twists e plots secundários, por isso não se espere mais que uma história que se resume em poucas palavras. Mas é competente no realismo e na normalidade que o título apregoa. Assim se sintam com pachorra para aturar a Marianne e o Connell.
Susana Romana é guionista e professora de escrita criativa