Se há uma coisa de que não podemos acusar Christopher Nolan, é de falta de coerência. E se há uma qualidade que ele tem, é a consistência. Em “Tenet”, e tal como nas suas duas superproduções de ficção científica anteriores, “A Origem” e “Interstellar”, Nolan quer servir ao público o melhor espectáculo cinematográfico possível, e ao mesmo tempo pô-lo a pensar, dar que fazer aos neurónios do espectador. E se em “Interstellar” o realizador ia mais longe do que em “A Origem” no tema, na narrativa, na especulação e no aparato visual, em “Tenet”, Christopher Nolan pretende superar “Interstellar” em todos estes aspetos, voltando a assentar o enredo em conceitos da física quântica (o conhecido físico teórico Kip Thorne volta aqui à sua função de consultor científico.)

[Veja o “trailer” de “Tenet”:]

Já antes da eclosão do Covid-19, “Tenet” era a superprodução mais aguardada do ano. Na presente conjuntura, essa expectativa mais do que duplicou. Porque é com este filme, o primeiro “blockbuster” a estrear-se desde o início da pandemia, que a indústria cinematográfica, os distribuidores e os exibidores contam para voltar a atrair espectadores aos cinemas que estiveram fechados durante meses (e ainda assim continuam em vários países) e tentar dar a rentabilidade possível a um verão quase totalmente perdido em termos comerciais. E é inegável que Christopher Nolan, que sempre resistiu a lançar em “streaming” um filme concebido para ser visto em sala e rodado em IMAX, não tenha tentado dar o seu melhor.

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[Veja uma entrevista com Christopher Nolan:]

Rodado em vários países e com um orçamento que terá chegado aos 225 milhões de dólares, “Tenet” é um mega-filme de 007 cruzado de história de ficção científica sobre distorção cronológica, inversões do fluxo temporal e mundos paralelos, onde James Bond encontra Stephen Hawking, MC Escher e Lewis Carroll. Falar muito sobre o enredo é arriscar começar a largar “spoilers”, por isso digamos apenas que John David Washington (“BlacKkKlansman: O Infiltrado”) interpreta um enigmático agente secreto conhecido como O Protagonista. Ajudado por um homem dos serviços secretos britânicos, Neil (Robert Pattinson), O Protagonista tem que evitar uma catástrofe mundial de características nunca vistas, e para isso neutralizar um super-vilão, o bilionário russo Sator (Kenneth Branagh).

[Veja uma entrevista com John David Washington:]

Só que em “Tenet” a ameaça à existência da humanidade encontra-se menos no presente do que no futuro. É de lá que vem o perigo, e é por isso que no filme há balas que são disparadas ao contrário, carros que andam de trás para a frente, pessoas que lutam às arrecuas, falam às avessas, coexistem duplicadas no mesmo espaço e no mesmo tempo e se movimentam numa vertiginosa jigajoga entre o presente e o futuro, fazendo com que ele se dobre sobre si próprio e partilhe pontos de vista temporais diferentes em simultâneo (o próprio título é um palíndromo). “Tenet” comporta-se como um contorcionista de circo dotado não só de uma maleabilidade infinita, como da capacidade de se cindir em dois.

[Veja uma entrevista com Elizabeth Debicki e Robert Pattinson:]

Esta desconcertante elasticidade espácio-temporal é aproveitada por Christopher Nolan para filmar um punhado de sequências de ação de suspender o fôlego: um assalto de forças de choque a uma Ópera de Kiev tomada por terroristas, um Boeing 747 de carga usado como um aríete contra um terminal de aeroporto, uma perseguição de automóvel em dupla cronologia ou uma batalha entre tropas de elite numa base de mísseis russos destruída por uma explosão nuclear e cujos participantes se enfrentam em dois momentos temporais distintos, um que já aconteceu e outro que está a acontecer. E aqui, as máquinas do tempo chamam-se torniquetes e são totalmente diferentes de todas as que o cinema mostrou até hoje.

[Veja uma entrevista com Kenneth Branagh:]

O problema de “Tenet” está no argumento, também de Christopher Nolan. Não é fácil utilizar complexos conceitos quânticos que só existem no reino da especulação – e em especial os paradoxos temporais – numa ficção cinematográfica e conseguir uma narrativa clara, com coerência interna e que seja consistentemente plausível de cabo a rabo, que não se torne arrevesada, atabalhoada e confusa, fazendo com que o espectador, a certa altura, deixe de acreditar no que está a ver. Ora é isso que acontece a dado momento das duas horas e meia de “Tenet”. A história torna-se de tal forma convoluta, fica tão enrolada sobre si própria e as cabriolas temporais são tantas e tão intrincadas, que não há pausa para explicação rápida, proeza de ação, efeito especial, porte aristocrático de Elisabeth Debicki (que faz a mulher do vilão) ou ginástica da câmara que lhe valha. Onde “Interstellar” fazia sentido, “Tenet” é uma baralhada.

[Veja cenas da rodagem:]

As personagens são quase todas estereótipos do cinema de espionagem, o que não beneficia os atores (Robert Pattinson é ainda o que se sai melhor, com o seu espião operacional muito “british cool”, enquanto que o cruel e vociferante  Sator de Branagh é dolorosamente caricatural). E quando chega finalmente a explicação para todo o empenho que o futuro põe na destruição do passado, nosso presente e do filme, ela é tão breve como nada convincente, uma vaga história de catástrofe ambiental. Christopher Nolan deu em “Tenet” um passo maior do que a perna, mas louve-se o seu arrojo, além da já referida coerência. E se eu fosse aos produtores de James Bond, contratava-o já, já, para realizar os próximos filmes da série.