“Man, está quente”
Este é o primeiro verso de “Smooth”, que a par do solo de guitarra de Santana e das congas, compõe uma canção de verão paradigmática. O conceito de canção de verão não é estático, é definido pelo senso comum e deve obedecer a um par de regras basilares: a omnipresença durante a época balnear e versos soalheiros carregados de suor e sensualidade; o sexo é inseparável da canção de verão, desde o harém seletivo de “Mambo No. 5” às exigências embaraçosas de Robin Thicke em “Blurred Lines”; a batida é pegajosa e monocórdica, morosa e suada, sem pressa, devagarinho, ou como lhe chama Luis Fonsi: “Despacito”. Cardi B chama-lhe outra coisa: “Wet-ass pussy”. Não nos vamos aventurar em traduções, contentamo-nos pela sigla que dá nome à canção: “WAP”.
“WAP” é a canção de verão de 2020. E como todas as canções de verão, o novo single da rapper do Bronx, Cardi B, com participação do furacão texano Megan Thee Stallion, foi eleito democraticamente. Neste momento é a canção mais ouvida no Spotify e Apple Music mundialmente e é número um na Billboard norte-americana. No entanto, a excecionalidade em “WAP” não é a quantidade de streams registados, é mesmo a poesia erótica sublimemente — e pertinentemente — empregada. Ao contrário de canções como “Smooth”, “Mambo No. 5”, “Blurred Lines” e “Despacito”, “WAP” trata do prazer da mulher no sexo, e mais especificamente, num sentido lato, da relevância da vagina, que costuma ficar à parte desta história lasciva da canção popular.
Em “WAP”, a rapper Belcalis Marlenis Almánzar mascara-se novamente da personagem cartunesca Cardi B e explica que não é uma dona de casa, não cozinha nem limpa, enumera uma série de malabarismos sexuais, que sem entrar em detalhes desnecessários, tornam-na, e passo a citar, de tal forma confortável que é necessário “um balde e uma esfregona”. Os versos aparentemente grosseiros de “WAP” reiteram que dentro do contexto particular do hip hop, a mulher tem o mesmo direito ao piropo, à confiança exacerbada e a qualquer metáfora genital rebuscada — que podem incluir camiões, cobras, peixes e macarrão.
[O vídeo oficial de WAP]
Além da engenhosa ordinarice, a canção não tem um mistério excecional, sendo uma nova produção da dupla Austin Owens e James Foye III — Ayo N Keyz — que dividiu um Grammy por Invasion of Privacy, o surpreendente disco de estreia de Cardi B que figurou nas listas dos melhores do ano em 2018. O ponto de partida em “WAP” é um sample de “Whores in This House”, um clássico da cena club de Baltimore lançado por Frank Ski em 1992, a que se acrescenta uma sequência rítmica padrão e um baixo elementar onde se deita o flow característico de Cardi B — incisivo, vagaroso e com personalidade para dar e vender. Composto e gravado durante a quarentena, “WAP” é o primeiro single do álbum que sucede a Invasion of Privacy, onde a rapper contou a sua história e se tornou uma heroína do folclore urbano, de stripper à glória dos discos e champanhe. E agora, depois de expor a sua vida ao mundo, do detalhe mais cómico ao sórdido, calculou que era o momento certo para lançar “WAP”, o manifesto definitivo que coloca a sexualidade feminina no pedestal que merece.
O pedestal em homenagem à sexualidade feminina não é meramente sugestivo, nem somente uma canção, é uma mansão com uma fonte que desagua pelos seios de duas estátuas giratórias, conforme 138 milhões de pessoas assistiram no vídeo de apresentação de “WAP”. Esta mansão, uma espécie de fábula sensual de Cardi B e Megan Thee Stallion, é a representação extrema do sexo no feminino, uma celebração mais fantástica que real, com uma série de divisões que são portais para particularidades eróticas, desde Rosalia de cabedal à Kylie Jenner de tigresa. E a esta altura do campeonato, em meados de 2020, não deveria ser necessário mencionar que o TikTok respondeu na mesma letra, com uma sucessão sem fim de desafios de dança lascivos, e aparentemente impossíveis de executar para o comum mortal.
A conjugação dos versos com o vídeo burlesco e o frenesim de rebolanço em casa durante a pandemia, suscitou uma série de comentários depreciativos no espectro político mais conservador norte-americano. O republicano James P. Bradley, candidato californiano à Câmara dos Representantes, considera que “WAP” é o que acontece quando “as crianças são criadas sem Deus”, ao mesmo tempo que sublinha que ouviu a canção “acidentalmente”. O radialista Ben Shapiro dedicou uma porção do programa ao lançamento de Cardi B, dizendo — provavelmente de forma irónica — que é por isto que o movimento feminista tem lutado. A republicana DeAnna Lorraine vai mais longe, defende que as rappers retardaram o “género feminino inteiro em 100 anos”, lembrando que Cardi B fez campanha com Bernie Sanders e foi apontada como um exemplo por Kamala Harris, a candidata à vice-presidência democrata. Fortuitamente, ao associar a canção às “guerras culturais” que fazem parte das eleições norte-americanas, os principais críticos confirmam que “WAP” é mesmo um fenómeno.
Por outro lado, a célebre ginecologista Jen Gunter, que escreveu o bestseller A Bíblia da Vagina, agradece a canção e recorda que existe um grande mercado para produtos adstringentes. Apesar deste apontamento singular, os elogios a “WAP” advêm sobretudo de quem tem defendido a importância de exaltar a sexualidade das mulheres negras. A jornalista Brianna Holt, sempre atenta ao que os norte-americanos chamam de “questão racial”, escreve na Complex que “WAP” é um excelente exemplo de feminismo progressivo, respondendo diretamente às críticas: “Estas críticas ridículas mostram, mais uma vez, que o sexo é apenas uma expressão tabu na música quando se refere às mulheres — especificamente às mulheres negras”.
E é aqui que entra em cena Megan Jovon Ruth Pete — Megan Thee Stallion — a rapper de Houston que até ressurgir Cardi B com um estrondo, encarregava-se de sensualizar sozinha 2020 por inteiro. Depois de lançar este ano o EP Suga, repleto de bangers como “B.I.T.C.H.” que tem entretido a geração Tik Tok, foi ao lado do maior mito de Houston, Beyoncé Giselle Knowles-Carter, que foi dado o tiro de partida para um ano de júbilo sexual no feminino: “Savage”. Esta canção estrondosa foi lançada no final de abril e até hoje está lançado o desafio para alguém fazer melhor em 2020. A escolha de Megan para acompanhar Cardi B em “WASP” não é inocente, é uma união de supra-sensualidade ao invés de uma cisão, lembrando que como Fiona Apple explicou este ano em “Ladies”, existe um fomento à competição entre as mulheres: “Nobody can replace anybody else/ So, it would be a shame to make it a competition”. E Megan Thee Stallion é também a forma que a jocosa Cardi B encontrou para elevar a sua mensagem de empoderamento à linguagem do hip hop mais direto. Ao contrário da exuberância da rapper do Bronx, Megan versa velozmente e ferozmente, de forma ameaçadora, e demonstra que além da cantiga, a sexualidade também é uma arma.