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O amor e a loucura de Medeia, para mostrar que os clássicos não têm prazo de validade

Este artigo tem mais de 3 anos

Uma adaptação da peça de Eurípides sobe esta quarta-feira ao palco do Teatro Romano de Lisboa para fazer uma ponte com o presente e provar que os clássicos não estão ultrapassados.

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Encolhida dentro de um casulo no centro das ruínas do Teatro Romano de Lisboa, Medeia ouve a sua história ser relatada pela tia, a feiticeira Circe. Todos os crimes que cometeu são expostos, e Medeia geme, sabendo que o homem por quem os cometeu, Jasão, capitão dos Argonautas, a abandonou por outra. “A única coisa que fiz foi ser dedicada àquele que amo”, declara às mulheres de Corinto, justificando assim o assassínio e esquartejamento do irmão, a morte do rei Pélias às mãos das suas próprias filhas, por ela enganadas, e todos os atos terríveis que ainda não realizou, mas que planeia realizar. O texto da peça homónima, que a partir desta quarta-feira ficará em exibição no Teatro Romano, não a julga — esse julgamento cabe a quem, do lado da plateia, a ouve expor a sua causa.

Na mitologia clássica, existem poucas personagens mais controversas do que a filha do rei Eetes da Cólquida, conhecida por ter assassinado os filhos num ato de vingança contra o marido, Jasão, que decidiu abandoná-la e casar com a filha do rei de Corinto. Esta fama deve-se sobretudo à famosa peça de Eurípides, que se passa toda em Corinto e que procura, através de uma retrospetiva do seu passado sangrento, explicar as razões do seu estado mental e dos atos de loucura que se propõe a executar. Foi esta tragédia com mais de 2.500 anos, uma das mais famosas do dramaturgo ateniense, que serviu de base para o texto apresentado no Teatro Romano pela companhia Teatro Livre, com encenação de Beto Coville, que também participa como ator, no papel de Creonte, rei de Corinto.

Medeia é interpretado pela atriz Carla Chambel, que assume uma postura de quase acrobata nalgumas cenas (o papel é fisicamente exigente e inclui, logo no início, uma coreografia aérea). O alvo da sua paixão cega, Jasão, é Eurico Lopes; Circe é Luísa Ortigoso; Egeu é João Araújo; e o coro as atrizes Helena Veloso, Inês Oneto e Sofia Brito. As personagens da Medeia do Teatro Romano são menos do que as da tragédia de Eurípides e o enredo teve de ser encurtado (a peça tem a duração de 1h10) — como as ruínas ficam situadas no centro de Lisboa, junto à Sé, o espetáculo tem de terminar antes das 23h –, mas a história é, na sua base, aquilo que o dramaturgo ateniense criou, com um toque moderno dado pelos figurinos quase futuristas de Valentim Quaresma, a música etérea de Davide Zaccaria e a adaptação do texto para um formato mais coloquial, “para que todas as pessoas que o vejam o entendam”.

MELISSA VIEIRA/OBSERVADOR

“Não fazemos o julgamento da Medeia. Deixamos em aberto e mostramos o que fez com que ela chegasse a tal ponto”

A história de Medeia, tal como narrada por Circe, que na adaptação de Beto Coville assume o papel de narradora, começa na Cólquida, uma região a norte da Grécia. É aí que a filha do rei Eates e da oceânide Idia conhece Jasão e é tomada por uma paixão arrebatadora que a levou a cometer as maiores atrocidades. Depois de o ajudar a conseguir o velo de ouro em troca de uma promessa de matrimónio, Medeia foge com ele, matando e esquartejando o seu irmão Apsirto para atrasar o seu pai, que os seguia.

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Chegados a Iolco, Medeia decide vingar-se do rei Pélias, que tentara matar Jasão impondo-lhe a procura pelo velo de ouro na Cólquida. Enganando as suas filhas por meio de feitiços (a princesa era versada nas artes mágicas, tal como a sua tia), leva-as a assassinarem o seu próprio pai. Na sequência do homicídio do rei, Acasto, filho de Pélias, decide banir Jasão e Medeia, que acabam em Corinto, onde são recebidos por Creonte que, eventualmente, faz ao argonauta a proposta que leva aos episódios descritos na tragédia de Eurípides — o casamento com a sua filha, Creúsa. Na sequência deste, Medeia é expulsa do reino, mas consegue adiar a sua partida por um dia, que aproveita para preparar a sua vingança, que inclui o assassínio dos seus filhos. É neste ponto que a peça começa.

“Medeia sempre foi vista, ao longo da história, como a mulher que matou os filhos”, começou por apontar Beto Coville, numa breve conversa com o Observador antes de um ensaio corrido, na segunda-feira à noite, nas ruínas do Teatro Romano. “Freud usou esse estereótipo para criar algumas teorias sobre a neurose feminina. O nosso objetivo aqui é mostrar realmente a psique feminina e como Medeia chegou ao ponto de matar os filhos. Não tinha de o fazer, mas tomou essa opção.” Personagem que sempre gerou mais ódios do que simpatias, Medeia não é, na versão do encenador, julgada: “Não fazemos o julgamento da Medeia. Deixamos em aberto e mostramos o que fez com que ela chegasse a tal ponto”, declarou o encenador e ator.

MELISSA VIEIRA/OBSERVADOR

Uma das razões que levam Medeia a tomar a resolução de assassinar os próprios filhos, e também a noiva de Jasão, tem a ver com as promessas e as juras de amor eterno que a princesa da Cólquita diz que o argonauta lhe fez e não cumpriu. “É uma mulher que foi enganada”, disse Beto Coville, lembrando que, ao abandonar o seu reino, Medeia se tornou também “uma estrangeira numa terra distante”. Este aspeto foi um dos motivos que levou o encenador a escolher esta tragédia de Eurípides para levar à cena no Teatro Romano de Lisboa: “Destaco muito isso no espetáculo, que ela é uma mulher estrangeira na Grécia. Ela é do norte, da Cólquita, onde hoje se situa a Geórgia. Ela foi para a Grécia juntamente com o marido, que era grego. Ela é uma estrangeira e sente a falta de apoio da família e dos amigos.”

Abandonada pelo marido, que decide por razões políticas casar com a filha de Creonte, Medeia é deixada sozinha com os filhos. “É esse processo, que se passa dentro da sua cabeça, que vemos durante a peça”, que chama a atenção para vários aspetos da condição feminina e da vida da mulher, que não tem outro destino a não ser o casamento com um homem que pode não a respeitar. Alguns discursos de Medeia, “não sendo feministas, são femininos”, apontou Beto Coville. “Ela coloca a sua situação de uma forma muito clara, e é isso que tentamos fazer. É por isso que digo que não é um julgamento, mostramos tudo o que se passa antes do ato. E as pessoas são livres de pensarem aquilo que quiserem.”

MELISSA VIEIRA/OBSERVADOR

“Apesar destes textos terem mais de dois mil anos, são muito atuais”

Esta é a segunda tragédia clássica a ser levada à cena no Teatro Romano de Lisboa por Beto Coville e pela Teatro Livre. Em 2019, a companhia apresentou uma adaptação de Édipo, a tragédia de Sófocles sobre um homem que mata o pai e casa com a própria mãe, chamando a atenção para “os cegos que guiam cegos, ou seja, [para] a cegueira humana diante das grandes catástrofes”. “Não imaginávamos que viria aí a pandemia da Covid-19”, apontou o encenador, lembrando que “o Édipo fala precisamente sobre uma peste que assola a sua cidade, Tebas, e a cegueira humana diante do que está diante dos seus olhos. [Fala sobre] o que nós não vemos, o que nós não queremos ver”.

“Este ano, optámos por falar da obsessão feminina, [sobre] até que ponto uma mulher pode levar a sua obsessão por um homem”, disse o encenador e ator, apontando que que estes “são temas bem definidos nos textos clássicos” e lembrando que estes inspiraram muitos autores posteriores, como Shakespeare, que têm muitas personagens que “vêm do teatro clássico”. “Os temas são tão bem escritos e, apesar destes textos terem mais de dois mil anos, são muito atuais”, frisou Beto Covile.

“Hoje é tão atual a história da mãe que mata os filhos que, há poucos meses, tivemos a história de uma mãe que tentou matar o filho no hospital com clorofórmio para chamar a atenção do marido. Ou há, dois, três anos, houve uma outra mãe que tentou afogar os filhos porque queria chamar a atenção do marido. Os textos clássicos, além de nós, atores, os termos estudado [na escola de teatro] e de nos conectarem com uma arte antiga, que é a nossa, ao fim e ao cabo, também nos trazem informações muito pertinentes sobre a sociedade atual.”

Medeia, a partir de Eurípides, estreia esta quarta-feira, 2 de setembro, nas ruínas do Teatro Romano de Lisboa. Ficará em cena até 20 de setembro. Os bilhetes custam 6€ e as sessões acontecem de quarta a domingo, às 21h30. O espaço tem um limite de 30 espectadores

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