Na mitologia clássica, grega e latina, existem poucas ou nenhumas personagens que se podem considerar inteiramente más ou inteiramente boas. Nem os deuses escapam a esta classificação — também eles, tal como os humanos, cometem erros, são injustos e violentos, deixam-se dominar pela raiva e ficam cegos com o amor. Quantas vezes Zeus se apaixonou por uma mortal? E quantas vezes a sua mulher, Hera, se vingou? A Guerra de Tróia não começou com uma competição entre três deusas, arbitrada por Páris?
A imperfeição das personagens mitológicas pode parecer estranha, mas é precisamente nela que reside o fascínio que a mitologia clássica exerce ainda hoje. Existe algo de verdadeiramente humano nos deuses do Olimpo, em heróis como Héracles (o Hércules dos gregos) ou Aquiles e nos reis e rainhas que se deixaram cegar pelo orgulho (às vezes literalmente, como aconteceu com Édipo) ou que não desistiram até se conseguirem vingar dos seus inimigos.
Existem, contudo, algumas figuras que serão sempre recordadas como más, normalmente por causa dos crimes horripilantes que cometeram, muitas vezes contra a própria família. É o caso, por exemplo, de Atreus, o filho de Pélops, antepassado de Orestes, que matou os sobrinhos e os deu de comer ao irmão porque este o tentou enganar durante a escolha do novo governante de Micenas; de Medeia que, apesar de ter sido enganada por Jasão, que lhe fez promessas que nunca cumpriu, ficou conhecida (em grande parte graças à famosa tragédia de Eurípedes) por ter assassinado os filhos num ato de vingança; e de outras personagens que o Observador reuniu com a ajuda do Dicionário de Mitologia Grega e Romana, de Pierre Grimal, que vai voltar a estar disponível no mercado português.
Publicado pela primeira vez em 1951, o Dicionário da Mitologia Grega e Romana de Pierre Grimal teve desde então inúmeras edições, em francês e noutras línguas. Obra de referência sobre a Antiguidade Clássica, é um guia essencial acessível a todos os tipos de leitores, que “não só fornece elementos fundamentais para a interpretação de textos e obras de arte, como desvenda a origem de tópicos, imagens e palavras de um património que se tornou parte do nosso quotidiano e da memória coletiva da cultura ocidental”, referiu a Antígona, editora que lançou uma nova edição do Dicionário no final do mês de janeiro.
Atreus, filho de Pélops e irmão de Tiestes a quem deu a comer os próprios filhos
A história de Atreu, filho de Pélops e Hipodamia, tem por base o ódio recíproco pelo seu irmão mais novo, Tiestes, e as “horríveis vinganças que levaram a cabo, um contra o outro”. O sentimento que tinham um pelo outro teria tido origem numa maldição de Pelops, que baniu os irmãos depois de, com a ajuda de Hipodamia, terem matado o seu meio irmão Crisipo, filho da ninfa Axíoque.
“Estes refugiaram-se em Micenas, junto de Euristeu, de quem Atreu era tio, ou antes, segundo a versão mais corrente, em casa do pai de Euristeu, Esténelo”, contou Pierre Grimal no seu dicionário. “Quando este expulsou Anfitrião das suas terras da Argólida, confiou a cidade e o território de Mídea a Atreu e a Tiestes. Mais tarde, quando Euristeu morreu sem deixar filhos, sob os golpes dos Heraclidas, um oráculo aconselhou os habitantes de Micenas a tomar como rei um filho de Pélops. Mandaram então chamar Atreu e Tiestes e cada um começou a alegar as qualidades de realeza. Foi nesta altura que veio ao de cima o seu ódio recíproco.”
Atreu tinha, em tempos, encontrado um cordeiro cujo velo era de ouro. “Se bem que tivesse feito a promessa de sacrificar a Ártemis o melhor produto do seu rebanho, nesse ano reservou para si este cordeiro, cujo velo escondeu num cofre. Mas a sua mulher Aérope, que tinha Tiestes como amante, dera a este o extraordinário velo.” Com a pele do cordeiro em sua posse, Tiestes sugeriu que fosse escolhido como rei aquele que o “pudesse apanhar”. “Atreu aceitou, pois ignorava o furto de Aérope. Tiestes exibiu então o velo e foi eleito. Mas Zeus mandou avisar Atreu, por intermédio de Hermes, para estabelecer com Tiestes que o verdadeiro rei seria designado por um outro prodígio: se o Sol alterasse o seu curso, seria Atreu que reinaria sobre Micenas; caso contrário, Tiestes aceitou, e logo o Sol teve o seu ocaso no Oriente. Deste modo, Atreu objeto evidente do favor divino, reinou definitivamente sobre a cidade.”
Atreu não se contentou com o trono de Micenas e depressa engendrou um plano para se vingar do irmão — em segredo, matou os três filhos que Tiestes tivera de uma Naíade (ninfa aquática), Aglau, Calilente e Orcómen, apesar de estes se terem refugiado como suplicantes junto de um altar a Zeus; cortou-os em pedaços, cozinhou-os e convidou o pai para um banquete, onde estes foram servidos como prato principal. No fim da refeição, Atreu mostrou a Tiestes a cabeça das crianças, revelando o que tinha sido o jantar, e expulsou-o do pais.
Tiestes refugiu-se em Sícion, onde se dedicou a planear a sua vingança. Segundo o conselho de um oráculo, gerou da própria filha, Pelópia, um filho, Egisto. Pelópia casou-se depois com Atreu, que criou Egisto com seu filho e a quem, já crescido, confiou a tarefa de matar Tiestes. Egisto acabou por descobrir a verdade — que Tiestes era o seu pai — e, regressado a Micenas, matou o tio e entregou o reino ao pai.
Uma tradição aponta Atreu como pai de Agamémnon e Menelau, figuras centrais da Guerra de Tróia. É essa ligação à casa de Pelops e à sua maldição que explica a morte trágica de Agamémnon às mãos da mulher, Clitemnestra, posteriormente assassinada pelo filho, Orestes. A história de Orestes inspirou a mais famosa tragédia do dramaturgo ateniense Ésquilo, Oresteia.
Clitemnestra, irmã gémea de Helena e assassina do marido Agamémnon
Clitemnestra era irmã de Timandra, de Filónoe, filhas “humanas” de Leda, e de Helena — a mulher mais bela do mundo cujo rapto por Páris que levou ao início da Guerra de Tróia — e dos Dioscuros, filhos divinos que Leda teve de Zeus, que se uniu a esta sob a figura de cisne, num dos episódios mais famosos da mitologia grega. Clitemnestra era gémea de Helena mas, ao contrário desta, era filha de Tíndaro.
O primeiro marido de Clitemnestra foi Tântalo, filho de Tiestes. Este e os seus dois filhos foram assassinados por Agamémnon que, perseguido pelos Dioscuros, foi obrigado a casar com Clitemnestra. “O casamento começava mal”, apontou Pierre Grimal, e acabaria ainda pior. O casal teve vários filhos: Crisótemis, Electra (ou Laódice), Ifigénia (ou Ifianassa) e Orestes. Durante a Guerra de Tróia, Clitemnestra tomou ainda ao seu cuidado a sobrinha, Hermíone, de nove anos, filha de Menelau, irmão de Agamémnon.
No início da viagem do exército grego para a Tróia, quando este se encontrava em Áulis, o onde as tropas se reuniram, adivinho Calcas declarou que os deuses exigiam um sacrifício — o de Ifigénia. Agamémnon, que tinha sido nomeado comandante supremo do exército, mandou então chamar a mulher que tinha ficado em Argos (ou Micenas, pois o nome do reino de Agamémnon varia consoante as fontes) com os filhos, sob o pretexto de celebrar o noivado de Ifigénia com Aquiles e mantendo as suas intenções em segredo. “Sacrificada Ifigénia, mandou Clitemnestra de volta para Argos, onde ela alimentou projetos de vingança”, apontou Grimal. “Já quando Télefo, ferido por Aquiles durante a expedição à Mísia, foi a Argos pedir que o mesmo Aquiles o curasse, foi Clitemnestra quem o aconselhou a ameaçar Agamémnon, tomando Orestes, ainda pequenino, como refém.”
Em Argos, Clitemnestra tinha sido deixada na companhia de um cantor chamado Demódaco, que tinha sido encarregado de a aconselhar. Mas Egisto, filho de Tiestes, “enamorou-se dela e não sossegou enquanto não afastou o aedo [o cantor]. Clitemnestra sucumbiu, talvez instigada pelas sugestões de Náuplio, que procurava vingar-se dos gregos corrompendo-lhes as mulheres, porque eles lhe tinham matado o filho, Palamedes, e também levada pelo desejo de se vingar do marido, que tinha sacrificado a sua filha Ifigénia, ou ainda por ciúme porque ela sabia da ligação do marido com Criseide”. Na ausência do rei, Egisto tornou-se dono e senhor do palácio e conspirou matá-lo assim que regressasse de Tróia.
Nas versões mais antigas da história, Clitemnestra nada tem a ver com a morte do marido. Nas tragédias, contudo, é sua cúmplice e assassina, matando o marido com as próprias mãos. “Prepara-lhe uma veste, com as mangas e o pescoço cosidos, que o embaraça ao sair do banho quando tenta vestir-se, o que permite desferir-lhe o golpe sem risco. Mata igualmente Cassandra [filha do rei de Tróia, que depois do saque da cidade tinha sido entregue a Agamémnon, que se apaixonou por ela], de quem tem ciúmes, não sem a ter previamente insultado. Nos trágicos, Clitemnestra persegue com o seu ódio os filhos de Agamémnon. Manda encerrar Electra num calabouço e teria matado Orestes se a criança não tivesse sido subtraída pelo seu preceptor”, resumiu Grimal no verbete dedicado à filha de Leda. O assassínio de Agamémnon é depois vingado por Orestes, que mata a mãe.
Crono, o filho mais novo de Úrano que destronou o pai e engoliu os filhos
Crono era o filho mais novo de Úrano (o Céu) e de Geia (a Terra). Pertencia à primeira geração de deuses, anterior a Zeus e aos Olímpicos. Era irmão dos Titãs, dos Ciclopes e dos Hecatonquiros, gigantes de cem mãos, e o único dos filhos de Geia que se voluntariou para ajudar a Terra a livrar-se do Céu, ao qual “armou uma emboscada e, com a ajuda de uma ‘foicinha’ que a sua mãe lhe dera, cortou os testículos ao pai, lançando-os ao mar”. Este episódio é geralmente apontado como tendo ocorrido no cabo Drépano, “assim denominado a partir do nome grego que designa foice. Por vezes o local indicado é Corfu, na região dos Feaces. Segundo tal versão, a ilha mencionada não seria mais do que a foice que Crono lançara ao mar e aí se enraizara. Os próprios feaces teriam nascido do sangue derramado pelo deus”. Associado à castração de Úrano está também o nascimento de Afrodite que, numa versão do mito, surgiu do local no mar onde caíram os testículos do deus.
Crono tomou o lugar do pai no céu “e sem tardar voltou a atirar para o fundo do Tártaro os Hecatonquiros (gigantes de cem mãos), que eram seus irmãos, bem como os Ciclopes, uns e outros outrora encarcerados por Úrano, e que ele próprio tinha posto em liberdade a pedido de Geia, mãe de todos eles”. Desposou Reia, sua irmã, “e, visto que Úrano e Geia, depositários da sabedoria e do conhecimento do futuro, lhe tinham predito que ele seria destronado por um dos seus filhos, devorava-os à medida que iam nascendo. Assim, gerou e devorou sucessivamente Héstia, Deméter, Hera, Plutão (Hades) e Posídon”.
Tal como a sua mãe, Reia revoltou-se contra o marido. Grávida de Zeus, fugiu para a ilha de Creta, onde o deus nasceu, em Dicte. “Depois, envolvendo uma pedra em panos, deu-a a devorar a Crono, que a engoliu sem suspeitar do embuste. Já crescido, Zeus, com a ajuda de Métis, uma das filhas de Oceano, ou da própria Geia, levou Crono a tomar uma droga que o forçou a devolver todos os filhos que tinha devorado. Estes, chefiados pelo seu irmão mais novo, declararam guerra a Crono, que tinha os Titãs, seus irmãos, como aliados. Dez anos durou a guerra, até que, por fim, um oráculo da Terra prometeu a vitória a Zeus, se ele fosse buscar para seus aliados os seres outrora precipitados por Crono no Tártaro. Zeus libertou-os e obteve a vitória. Crono e os Titãs foram encarcerados no lugar dos Hecatonquiros, que se tornaram seus carcereiros”, contou Grimal.
Além dos filhos que teve com Reia, Crono teve de Fílira o centauro Quíron, um imortal meio homem, meio cavalo. “Há outras lendas que lhe atribuem também a paternidade de Hefesto, que ele teria tido de Hera. Alguns autores consideram Afrodite sua filha e não de Úrano”, apontou o classicista.
Numa versão alternativa da sua história, ligada à religião órfica, Crono surge libertado e habitando as Ilhas dos Bem-Aventurados, depois de se reconciliar com Zeus. “Esta reconciliação de Zeus com Crono, considerado como rei bom, o primeiro a reinar no céu e na terra, conduziu às lendas da Idade de Ouro. Na Grécia, contava-se que, em tempos remotos, ele reinava em Olímpia. Na Itália, onde Crono foi desde muito cedo identificado com Saturno, localizava-se o seu trono no Capitólio. Dizia-se também que tinha reinado em África, na Sicília, e de modo geral, em todo o Ocidente mediterrâneo. Depois, quando os homens se tornaram maus, com a geração de bronze e, sobretudo, com a de ferro, Crono voltou a subir ao céu.”
Medeia, mulher de Jasão, o argonauta, e assassina dos próprios filhos
Medeia era filha do rei Eetes, da Cólquida, e da oceânide Idia, embora por vezes a deusa Hécate seja apontada como sua mãe. Era neta de Hélio (o Sol) e sobrinha da feiticeira Circe, que na tradição seguida por Diodoro é antes irmã de Medeia pois Hécate é apontada como mulher de Eetes. Na literatura alexandrina, mais tardia, e latina, tornou-se o protótipo da feiticeira, um papel que desempenha na tragédia ática e na lenda de Jasão e os Argonautas. A princesa é, aliás, uma personagem fundamental na história dos Argonautas — sem ela, Jasão não podia ter conquistado o velo de ouro, pois foi Medeia que lhe deu o unguento destinado a protegê-lo das queimaduras dos touros de Hefesto e que adormece o dragão.
Segundo Grimal, “uma tradição tardia, referida por Diodoro, diz-nos que Medeia era, de facto, uma princesa cheia de humanidade” e não a mulher cruel que é apresentada noutras versões do mito. Diodoro refere que Medeia opunha-se “frontalmente à política do pai, que consistia em matar todos os estrangeiros que chegassem ao país. Irritado com esta surda oposição, Eetes encarcerou-a numa prisão, da qual ela não teve qualquer dificuldade em fugir. Isso aconteceu precisamente no dia em que os Argonautas desembarcaram na costa de Colcos”.
Medeia firmou imediatamente um acordo com os aventureiros, “fazendo Jasão prometer que a desposaria se ela lhe garantisse o sucesso da sua empresa e o tornasse senhor do velo de ouro, que viera procurar tão longe. Jasão prometeu e, aproveitando o seu conhecimento da região, ela fez com que lhe abrissem o tempo onde se conservava a preciosa pele, enquanto os Argonautas atacavam os soldados e os punham em fuga”. Depois de conquistado o velo, Medeia fugiu com Jasão e os Argonautas, um ponto em que todas as lendas são coincidentes. Contudo, “para o seguir e lhe dar vitória, Medeia não só traiu e abandonou seu pai, como tomou como refém o seu próprio irmão, Apsirto, que não hesitou em matar e despedaçar para atrasar a perseguição de Eetes”.
Jasão não casou imediatamente com Medeia. “Foi adiado até fazem escala no país de Alcínoo e, de certo modo, imposto a Jasão e Medeia por Arete, mulher do rei dos Feaces: Alcínoo decidira efetivamente entregar Medeia ao enviado de Eetes, que a reclamavam para a castigar do seu crime, mas apenas se ela ainda fosse virgem. Arete preveniu secretamente Medeia da decisão do rei, e Jasão uniu-se-lhe, para a salvar, na gruta de Mácris”, referiu Grimal, apontando uma tradição “muito tardia” segundo a qual se teriam casado na Cólquida, onde tinham permanecido durante quatro anos: “Medeia, sacerdotisa (como Ifigénia na Táurica) de Ártemis-Hécate, teria sido encarregada de matar todos os estrangeiros que abordassem a Cólquida. Mas, ao ver Jasão, foi tomada por um amor súbito (inspirado diretamente por Afrodite), e a cena do sacrifício terminou num casamento. Esta versão, inspirada, como é óbvio, pela história de Ifigénia e Orestes, não parece primitiva”.
O episódio seguinte do mito passa-se em Iolco, onde Medeia se decidiu vingar do rei Pélias, “que tentara perecer Jasão, impondo-lhe a procura do velo de ouro. Persuadiu as filhas do rei de que, se quisesse, era capaz de rejuvenescer qualquer ser vivo, fazendo-o ferver num preparado mágico de que possuía o segredo. Sob os olhos das jovens, fez em pedaços num grande caldeirão que pusera sobre o fogo e, no instante seguinte, tirou dele um cordeiro bem vivo e satisfeito. Convencidas, por esta demonstração da sua arte, as filhas de Pélias despedaçaram o pai e deitaram os bocados num caldeirão fornecido por Medeia; mas Pélias nunca voltou a sair de lá. Na sequência deste assassínio, Acasto, filho de Pélias, baniu Jasão e Medeia do seu reino. Uma variante da mesma lenda (destinada a explicar que o regresso de Jasão, que Pélias julgava ter enviado para uma morte certa, não tenha levantado desconfianças), refere que Medeia deixou sozinha a nau Argo e foi para Iolco, disfarçada de sacerdotisa de Ártemis. Depois de consumado o crime e de as Pelíades se terem posto em fuga, horrorizadas com o que haviam feito, Medeia fez regressar Jasão. Este deu o reino a Acasto, filho de Pélias, que, contra vontade do pai, o acompanhara na procura do velo de ouro”.
Em seguida, “e tal como na versão anterior, Jasão e Medeia vão viver para Corinto”, onde existia um culto dedicado aos filhos de Medeia que, segundo Grimal, pode ter tido origem no episódio seguinte do mito. “Jasão e Medeia viveram algum tempo em Corinto, até que o rei Creonte quis dar a sua filha em casamento ao herói. Baniu Medeia, mas ela conseguiu adiar a sua partida por um dia, que aproveitou para preparar a sua vingança. Embebendo em veneno uma túnica, adornos e joias, fê-los chegar às mãos da feliz rival, por intermédio dos filhos. Mal ela os pôs, foi envolvida por um fogo misterioso, o mesmo acontecendo ao seu pai, que viera socorrê-la. Também o palácio foi invadido pelo fogo. Entretanto, Medeia matou os próprios filhos no templo de Hera, e voou para Atenas num carro com cavalos alados, presente do seu antepassado Sol. Diz-se que foi Eurípides o primeiro a fazer com que os filhos de Medeia tenham sido mortos pela mãe. Na versão anterior, eram lapidados pelos Coríntios, que os castigavam por terem levado a túnica e as jóias a Creúsa”.
Medeia teria fugido para Atenas porque tinha assegurado a ajuda de Egeu, convencendo-o que seria capaz de lhe dar filhos se ele casasse com ela. Acabou por ser banida de Atenas, tendo voltado para Ásia acompanhada pelo filho que tinha tido de Egeu, Medo, e depois para a Cólquida, onde Perses tinha destronado o seu pai. “Fez com que o matassem para devolver o reino ao pai”, apontou Grimal, referindo que havia uma tradição segundo a qual Medeia não tinha morrido, mas levada para os Campos Elísios “onde se uniu a Aquiles (tal como, de resto, Ifigénia, Helena e Políxena”.
Minos, o rei de Creta que mandou construir o labirinto do Minotauro
Minos foi um rei de Creta que se dizia ter vivido três gerações antes da Guerra de Tróia. A maioria das fontes apontam-no como filho de Europa (filha de Agenor e Telefaassa) e Zeus, criado pelo rei Astérion ou Astério de Creta, por vezes referido como seu pai verdadeiro. Era irmão de Sarpédon e Radamante, que se opuseram à sua subida ao trono depois da morte de Astérion. Em resposta a esta posição, Minos declarou que o reino era seu porque os deuses assim haviam decidido “e, para o provar, afirmou que tudo o que pedisse ao céu lhe seria concedido”. ”Oferecendo um sacrifício a Posídon, pediu ao deus que fizesse sair do mar um touro, prometendo em troca sacrificar-lhe o animal. Posídon enviou o touro, o que valeu a Minos o poder sem qualquer contestação; mas o rei não sacrificou o touro, pois achava que se tratava de um belo animal e desejava conservar-lhe a raça”, relatou Pierre Grimal.
Para se vingar, Posídon embraveceu o animal (e Héracles teve de o matar) e inspirou em Pasífae, filha de Hélio (o Sol) e Perseide e mulher do rei (noutras tradições, Minos era casado com uma filha de Astérion), um amor ardente. “Sem saber como havia de saciar a sua paixão, a rainha de Creta pediu conselho ao engenhoso Dédalo” — um artista ateniense que se encontrava na altura na corte de Midas —, “que fabricou uma vaca tão perfeita, tão semelhante a um animal de carne e osso, que o touro se deixou enganar”, refere a entrada do dicionário mitológico referente à filha de Hélio e de Perseide. Depois do encontra com o touro, Pasífae ficou grávida. Deu à luz um ser monstruoso, meio homem, meio touro, que se alimentava de carne humana — o Minotauro. Quando soube o que tinha acontecido, Minos revoltou-se contra Dédalo, proibindo-o de sair da ilha.
Foi ao ateniense que coube a tarefa de projetar um enorme palácio, “composto por de um tal emaranhado de salas e corredores que ninguém, a não ser Dédalo, conseguisse encontrar o caminho para dele sair. Foi lá que encarcerou o monstro. E, todos os anos (outros dizem que de três em três anos, ou mesmo de nove em nove), dava-lhes a devorar sete jovens e sete donzelas, tributo que impusera à cidade de Atenas”. Este ciclo foi quebrado por Teseu, que se ofereceu voluntariamente para integrar um grupo de sacrificados. Com a ajuda de Ariadne, filha do rei, e do seu novelo, conseguiu, depois de matar o Minotauro, encontrar a saída do Labirinto de Minos.
Esta lenda conserva, segundo Pierre Grimal, “vestígios da civilização ‘minoica’, que parece ter tido o culto do touro e dos enormes palácios, como os que as escavações de Evans encontraram no Cnosso e outros locais. O Labirinto é, de facto, o ‘palácio do machado de dois gumes’ (…), símbolo que se encontrou gravado um pouco por toda a parte nos monumentos minóicos e que tem talvez um significado ‘solar’.”
Apesar do incidente com o touro de Posídon, Minos teve vários filhos de Pasífae: Catreu, Deucalião, Glauco, Andrógeo (ou Eurígies), Ácale (ou Acacális), Xenódice, Ariadne e Fedra. teve também filhos ilegítimos: de uma ninfa chamada Paria (ou talvez originária da ilha de Paros), teve Eurimedonte, Crises, Nefálion e Filolau; de uma outra ninfa, chamada Dexítea, teve Euxântio. As fontes clássicas dão também conta de um grande número de aventuras amorosas — tão elevado que a mulher lhe lançou um mau olhado que fez com que todas as suas amantes morressem —, “e também, por vezes, da invenção da pederastia. Havia uma tradição segundo a qual foi Minos, e não Zeus, quem raptou Ganimedes. Teria sido igualmente amante de Teseu; reconciliou-se com ele depois do rapto de Ariadne e deu-lhe Fedra, sua segunda filha, em casamento”. Entre os seus amores femininos conta-se, por exemplo e de acordo com Grimal, “Britomártis, que preferiu lançar-se ao mar a entregar-se-lhe”.
Dizia-se também que tinha sido Minos “o primeiro a civilizar os cretenses, a governá-los com justiça e brandura e a dar-lhes leis excelentes, tão notáveis que se consideravam inspiradas diretamente por Zeus: Minos, de nove em nove anos, consultava o deus na caverna do Ida de Creta onde Zeus crescera, e onde recebia as suas diretrizes. Nestas funções de legislador, Minos é frequentemente posto em paralelo com o seu irmão Radamante, que expulsara levado pela inveja, e de que não seria mais do que um imitador. Nos Infernos, ambos tinham assento para julgar as almas dos mortos. Ajudava-o nessa tarefa Éaco”.