Sempre de preto, sempre de franja, sempre com o eyeliner cuidado. Jovem para sempre, mas sem clichés. Descreviam-na habitualmente assim, quando se referiam à “Gréco”, a mulher que não era suposto ter chegado onde chegou. Não era suposto sequer ter chegado à idade adulta. Pelo contrário, assim que se livrou de um passado em que a infância apenas lhe deu a luta pela sobrevivência, Juliette chegou-se a Paris para fazer da cidade coisa própria. Ganhou voz, mostrou-a a quem a queria ouvir para depois a impor com a elegância que levou até aos 93. Morreu esta quarta-feira. A notícia foi primeiro avançada pela agência AFP, depois confirmada pelos jornais franceses, que mais uma vez dela fizeram manchete.
“Juliette Gréco morreu rodeada dos seus familiares na sua amada casa de Ramatuelle (sudeste de França). A sua vida foi extraordinária”, disse a família em comunicado. Ainda a Côte-d’Azur, que transformou em morada, com terraço privilegiado e uma vista desafogada, coisa que procurou sempre manter mesmo quando a sorte lhe ditava o contrário; e ainda gente em seu redor, um clássico inevitável desde que lhe deram o título de “musa da margem esquerda” ou “musa do existencialismo”.
Deu voz a poemas antes de colocar o nome em discos, antes de se chegar aos palco e espalhar charme, com as interpretações e com o estilo que foi improvisando, que foi assumindo e, por fim, que foi deixando a quem veio depois — quem viesse que a tentasse seguir. Voz grave e fumada, encarquilhada em poeira e boa-má-vida, teve aulas de representação, ganhou o gosto à função de dar corpo e garganta aos poemas de outros e chamou a atenção de quem lhe deu tempo. Pouco depois, chamava a atenção de quem a via na rua, no café, fosse onde fosse. Juliette Gréco criava um lugar novo na boémia parisiense e justificava-o com uma sensibilidade ora melancólica e dramática, ora despreocupada e pouco dada a regras.
[“Parlez-moi d’amour”:]
Teve textos escritos por Sartre, escolheu poemas de Jacques Prévert; ou pedia que os musicassem ou alguém se adiantava e tratava da encomenda. Instalou-se no espaços que eram de George Brassens ou Serge Gainsbourg, ainda assim passando além do que seria expectável para uma mulher num mundo de homens. Gerou paixões, obsessões, teve as próprias e cantou sobre elas — ou então quem a escutava julgava estar a ouvi-las, qualquer uma das hipóteses seria a certa para Juliette Gréco, que provavelmente continuaria a pensar “como é que cheguei aqui”?
Nasceu em fevereiro de 1927, com o mesmo primeiro nome da mãe e o apelido do pai. Este aparece em muitas biografias como “ausente”; a mãe, contam outros tantos escritos (e lembrou a própria Gréco em diferentes entrevistas), não queria saber das filhas, Juliette e a irmã mais velha Charlotte. Em plena Segunda Guerra Mundial, a mãe de Juliette fazia parte da Resistência francesa. Entre detenções, torturas e deportações (no caso da mãe e da irmã), Juliette seria libertada pela Gestapo, depois de três semanas presa. Rumou sozinha a Paris, onde ficou ao cuidado de Hélène Duc, amiga de família, atriz e em boa hora conspiradora pelo futuro de Gréco.
Pelo caminho, enquanto procurava fugir ao frio, enquanto vagueava pelas ruas da capital, quando não estava no quarto com banheira que alugava, Juliette Gréco dava uso à roupa que lhe faziam chegar, quase sempre maior que o seu tamanho, muitas vezes de homens, pronta a ser dobrada em todas as pontas, para que lhe servisse e, mais tarde, para criar um estilo. Pegou em pequenos detalhes, tornou-os grandes e tornou-os independentes. A mesma independência que trouxe homens a orbitar à sua volta, sempre. Dos mais conhecidos aos que que nunca saberemos — dos primeiros contam Miles Davis ou Quincy Jones, Michel Piccoli ou o seu terceiro marido, desde 1988, o pianista Gérard Jouannest, que morreu em 2018. Do primeiro marido, Philippe Lemaire, teve uma filha, Laurence-Marie Lemaire.
[“Paris Canaille” ao vivo:]
O talento, a audácia e a inteligência de quem sabe o que fazer para se manter acima da superfície deram-lhe a fama e o proveito, o bom e o mau. Em 1965 haveria de tentar o suicídio, foi socorrida, levada para o hospital, sobreviveu. O proveito bom e mau; a imprensa que lhe auscultava a vida e a culpava de deixar corações partidos; mas, depois, os realizadores que nela descobriam um olhar raro, que nas câmaras reclamava por atenção. Se começou pelo teatro, como figurante de Paul Claudel, foi conquistando espaço, o mundo do cabaré acolheu-a e ela domou-o à sua medida. O canto e a plateia primeiro, pouco depois também o cinema lhe abriu as portas, ainda antes da viragem para a década de 50.
Jean Cocteau, Julien Duvivier, Jean-Pierre Melville, Jean Renoir. Todos a quiseram e ajudaram a transformar aquela década nos anos de Gréco, que ainda haveria de rumar aos EUA. Para estar ombro a ombro com Ava Gardner, para trabalhar com John Huston, Richard Fleischer, Orson Wells. Do cinema para a televisão, Gréco estava em toda a parte. Estrela pop como a própria não esperava. Até ao tal ano de 1965, a tentativa de suicídio, a vida salva em parte pelo casamento com Michel Piccoli e o equilíbrio que passou a procurar entre Paris e a Côte d’Azur.
Ainda assim, e ao contrário do que seria de esperar, a desilusão com parte da vida de estrela não lhe acabou com a vontade de se expressar, de viver o momento, provavelmente a única forma de que conhecia de ultrapassar (e de espremer) cada dia. Durante os anos 70 e 80 continuou a gravar, continuou a atuar, continuou a ser parceira de duetos e outra colaborações. Entre as décadas de 90 e 2000 é descoberta por novas gerações que nela continuamente encontram inspiração, que retrabalharam a obra que fez, que a tornaram digital e manipulável, em tudo o que isso tem de bom. Juliette agradecia, procurava mais, oferecia o que tinha e que julgava ainda vir a ter e voltava a retocar o eyeliner.