Conhecida por desenvolver ações ligadas ao surrealismo, à música e à literatura, a Fundação Cupertino Miranda, em Vila Nova de Famalicão, lançou um convite a três autores e académicos portugueses — António M. Feijó, João R. Figueiredo e Miguel Tamen – para fazerem algo “absolutamente inédito em Portugal”. “Além de termos a biblioteca pessoal do poeta Mário Cesariny e algumas sessões de poesia, quisemos apostar ainda mais no universo literário, primeiro num livro e depois recuperando esta torre que integra o edifício da nossa sede”, explica ao Observador Pedro Álvares Ribeiro, presidente da Fundação.
Depois de apresentarem uma lista “não definitiva” com os 50 autores mais importantes da literatura portuguesa no livro O Cânone, apresentado no passado dia 14 de outubro, aos quais são dedicados ensaios, chegou a vez de inaugurarem a exposição Louvor e simplificação da literatura portuguesa, que reúne numa torre reconstruída pelo arquiteto João Mendes Ribeiro e pelo designer João Bicker, alguns desses nomes (e outros que não estão naquela lista) e os relaciona entre si, com outras artes e o mundo contemporâneo.
“No livro gostávamos que as pessoas discutissem não os nomes que estão lá, essa é a parte menos interessante, mas as razões que os autores dos vários ensaios têm para achar que vale a pena olhar para aqueles nomes, sendo fundamentalmente um ponto de partida para que as pessoas conversem sobre essas propostas. Na exposição, o objetivo não pode ser exatamente o mesmo, até porque o público será diferente. Queremos que as pessoas encontrem enquadramentos surpreendentes e fora do contexto habitual”, afirma Miguel Tamen, um dos coordenadores do livro e da exposição.
A ideia não foi, por isso, fazer um museu de literatura comum, mostrando livros com a página aberta, textos colados nas paredes ou objetos fetiche, “como os óculos de Fernando Pessoa ou as pantufas do Eça de Queiroz”. “Não queríamos um museu de curiosidades, de belas artes ou uma biblioteca, isso está sempre a acontecer em todo o lado e não nos interessava. À exceção de uma sala de transição, não há um único livro na exposição”, adianta António M. Feijó.
Nos últimos sete anos, os três coordenadores escolheram excertos de textos, projeções e outros materiais que fossem capazes de mostrar a literatura portuguesa feita do século XV ao século XX, mas não de uma forma exaustiva. “Para ter a atenção das pessoas, a exposição não poderia ter material excessivo, por isso, não podíamos fazer referência a todos os autores que tratamos no livro, estava fora de questão. Tratava-se de fazer uma seleção, que foi sendo construída gradualmente, a partir de escritores e poetas que têm, de maneiras muito diferentes, a característica especial de terem alterado decisivamente a maneira como se fazia literatura em Portugal”, justifica Miguel Tamen.
De Camões às Três Marias: estes são os nomes que fazem parte do cânone da literatura portuguesa
O atual diretor da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa acrescenta que muitos do autores canónicos presentes na mostra são apresentados com poemas e textos menos conhecidos, “sugerindo coisas em que normalmente o leitor não repara”. “Não são todos os mais transformadores, mas estão na shortlist dos escritores mais marcantes”, garante.
A escolha dos protagonistas poderia ser “infinita e cheia de possibilidades”, mas António M. Feijó explica que foi feita com base em “limites positivos”, como o espólio que se encontrava na própria Fundação. “Se tinham aqui um espólio de fotografias de Fernando Lemos, com Alexandre O’Neill e a sua apaixonada Nora Mitrani, não vamos desperdiçar isso. Usamos essas imagens para desenvolver outras ligações.”
Bocage numa lata de conservas, corrimões com efemérides, túmulos e fado nas paredes
Ao longo de 500 metros quadrados, distribuídos por 14 salas, há poemas expostos, fotografias de Fernando Lemos e Alexandre Domingues, excertos de filmes de Manoel de Oliveira, vídeos de João Tuna e paredes onde se espreitam imagens, como os túmulos de D. Pedro e D. Inês, e ouvem-se sons, como pregões ou fados tipicamente lisboetas.
Logo à entrada, eis uma espiral formada com o nome dos protagonistas da exposição, sendo António Franco Alexandre o único autor atualmente vivo e Manoel de Oliveira o único que não é escritor. Nesse espaço inicial, lê-se um poema de Jorge de Sena dirigido ao lugar de Camões na literatura portuguesa, “sendo uma espécie de ameaça a todos os poetas que se seguiram”. “É um convite para as pessoas começarem a exposição sabendo que a história da literatura portuguesa não é um clube de amigos e muito menos um clube de poetas mortos. Há aqui uma personagem ameaçadora que vai determinar o que se vai passar a seguir”, explica o coordenador Miguel Tamen.
Cada sala corresponde ao ano em que o texto âncora daquele espaço foi escrito ou publicado. O percurso faz-se seguindo uma linha cronológica invertida que começa em 1970, com um poema de Ruy Belo dedicado ao ciclista José Maria Nicolau, que venceu por duas vezes a Volta a Portugal, e termina em 1443, com a crónica do rei D. João I de Fernão Lopes.
Ao longo de todo o percurso existe um corrimão preto que identifica todas as peças e contém também efemérides não literárias relacionados com o ano que dá o mote à sala. Algumas delas explicam o que têm em comum Mário Cesariny e Vitorino Nemésio, Alexandre O’Neill e Bocage, ou António Franco Alexandre e Luís de Camões, explorando temas tão diferentes como a religião, o amor ou o patriotismo. O tráfico de escravos é contado através de textos do padre António Vieira, já a época dos descobrimentos não é retratada com os típicos mapas repletos de caravelas, mas com uma campanha da pesca do bacalhau filmada por um tripulante com uma super 8.
Nesta “torre literária” são mostradas as viagens de Almeida Garrett, o amor de Álvaro de Campos, a Lisboa de Eça de Queirós, a Serra da Estrela de Gil Vicente ou o narcisismo de Bocage. “Considerado o primeiro poeta pop português”, Bocage é conhecido mais pela sua figura, que inspirou latas de conserva e bandas desenhadas, do que propriamente pelos seus poemas, que aproveita para se auto descrever. No espaço a ele dedicado, encontrará uma instalação interativa que lhe permite tirar um retrato tipográfico.
“Através do uso de algoritmos de visão computacional e de técnicas generativas não deterministas, o Photomaton cria retratos dos visitantes, usando apenas elementos tipográficos, mais especificamente letras, de modo a que cada visitante possa criar o seu retrato tipográfico e combiná-lo com um dos textos dos vários autores à escolha.”
O circuito é também pautado por excertos de filmes de Manoel de Oliveira, como “Amor de Perdição”, “O Quinto Império” ou “Ato da Primavera”, mapas astrais feitos por Fernando Pessoa a Álvaro de Campos ou Mário Sá-Carneiro, e fotografias, das mais antigas às mais recentes. “Quando Alexandre Herculano e Almeida Garrett falam da destruição do património na primeira metade do século XIX, ao lado encontramos fotografias do geógrafo Álvaro Domingues, que tem documentado os absurdos patrimoniais em Portugal nos últimos anos. Isto tudo conversa entre si”, sublinha António M. Feijó.
Os três coordenadores rejeitam que a exposição seja uma lição de história da literatura portuguesa, preferem vê-la como “uma experiência de leitura”, que começa na época contemporânea e recua até às origens da literatura. “Não é uma lição porque não há matéria e não há exames. O nosso objetivo é chamar a atenção, apontar o dedo, mostrar relações mútuas e iluminar conceitos”, defende Miguel Tamen.