A primeira exposição daquele que é considerado um dos artistas mais interventivos e criativos da contemporaneidade, o chinês Ai Weiwei — conhecido também pela sua oposição ao regime comunista de Xi Jinping — já tem local e data. Poderá ser vista na Cordoaria Nacional, em Belém (Lisboa), entre 4 de junho e 28 de novembro do próximo ano. A mostra terá como título “Rapture” e os bilhetes estão à venda já a partir de esta terça-feira, com o custo de 13 euros.
A revelação da data e local foi feita em conferência de imprensa no Museu da Eletricidade, em Lisboa. Na apresentação esteve presente o artista chinês.
Também presente esteve o diretor geral da promotora da exposição Everything is New, Álvaro Covões, que explicou que o anúncio serve para “dar ao mercado uma visão de que por um lado que a vida continua, por outro queremos ser quando vier a retoma um destino preparado e à frente de todos os outros com produtos culturais para receber os visitantes. E também para garantir uma boa oferta cultural aos habitantes da cidade de Lisboa”.
Ai Weiwei: “Até manifestantes de Hong Kong querem mudar-se para Portugal”
Em declarações aos jornalistas, questionado pelo Observador sobre a primeira impressão que teve de Portugal quando cá chegou, o artista chinês que tem passado temporadas em Portugal — como revelou o jornal Público, comprou uma propriedade perto de Montemor-o-novo — afirmou: “Vim aqui neste momento dramático e não tive grande oportunidade de socializar. Mas há dois dias fui a uma loja e um jovem disse-me: só pode ser o Ai Weiwei. Era um jovem artista que me reconheceu”.
Portugal tem tido um progresso económico muito forte nos últimos anos, é muito bom saber isso. Toda a gente anda a falar de Portugal e muitos artistas pensam em mudar-se para aqui. Até manifestantes de Hong Kong querem mudar-se para aqui, por ser um sítio pacífico, em que a ideologia é clara, com uma natureza fantástica — o oceano e a terra tornam o cenário muito, muito bonito. Tenho muito boas sensações sobre Portugal, foi por isso que decidi estabelecer-me aqui”, referiu.
Defendendo, em resposta aos jornalistas, que “não é possível confiar” em informações do regime de Xi Jinping, apontou que tem seguido “com bastante atenção” a evolução da Covid-19 no mundo e, sem ignorar a gravidade da pandemia, notou que pelos menos tem sido possível criar artisticamente. É disso exemplo o seu recente filme Coronation, rodado em Wuhan — não por Ai Weiwei, proscrito na China, mas por membros da sua equipa — e em locais “sensíveis” como hospitais.
A pandemia, notou ainda Ai Weiwei, “teve um impacto forte não só politicamente e financeiramente mas também culturalmente”. Para instituições como “galerias, museus e feiras de arte” a situação já era difícil mas agravou-se e “criou um forte dano no sistema vigente”. Porém, acrescentou, a situação permite também “repensar o modo como a arte pode funcionar e como a arte e a cultura se podem interligar com a vida real” e oferece “uma nova oportunidade às pessoas de repensarem que tipo de arte querem realmente, como a arte pode refletir os nossos tempos e como os artistas devem responder ao tempo em que vivem”.
“A China não vai aprender nada” com o coronavírus, diz dissidente Ai Weiwei
Já questionado sobre os inflamados protestos de este ano em Hong Kong, lembrou que a China tomou “medidas muito duras” para responder às manifestações e “nunca desistiria” do território, mas “os jovens acreditam na liberdade, não acreditam no comunismo”. E sobre as posições de outros países relativamente ao conflito, diz que o Ocidente mostrou “preocupação” mas “não apoiou verdadeiramente” os manifestantes e “não fez grande coisa”, até porque os países “tendem a ser bastante egoístas”.
A China está a tornar-se mais forte e vai tornar-se mais forte ainda. O Ocidente tem um grande desafio”, notou, lembrando que se no Ocidente vigora o “capitalismo livre”, a China não tem de jogar com as mesmas regras, podendo ter “um planeamento estratégico a longo prazo”.
Um “arqueólogo de práticas perdidas” que colaborou com “artesãos portugueses”. Mas não só
A exposição pretende mostrar Ai Weiwei como um artista que é também “um arqueólogo de métodos e práticas que foram sendo perdidas na história dos lugares” e que recupera “técnicas ancestrais perdidas” — de artesanato desde logo — aplicando-as à arte contemporânea, explicou o curador da exposição, Marcello Dantas.
“Esse processo pode ser aplicado também em Portugal”, dado que quando preparou a exposição Ai Weiwei pôde “contactar com artesãos” portugueses e com “técnicas” e “dar uma nova leitura a essas técnicas, com um sentido de arte contemporânea”, referiu o curador, sintetizando ao dizer que há uma tentativa de “resgatar tradições e trazê-las à modernidade”.
A primeira visita de Ai Weiwei a Portugal foi em junho de 2019, corroborou Marcello Dantas. Daí em diante começou um trabalho de colaboração com artesãos portugueses, com “diferentes ateliês”, para trabalhar materiais como “cortiça, azulejo, tecidos e pedra”. O próprio artista afirmou aos jornalistas que tentou “trazer alguns trabalhos que tenham relação com a cultura portuguesa” mas fez também “alguns novos trabalhos, em colaboração com artesãos locais”.
Uma parte significativa das obras que estarão expostas não foi especificamente criada com Portugal em mente, como é o caso de alguns trabalhos históricos na obra de Weiwei que estarão patentes na Cordoaria Nacional. São disso exemplo a instalação Snake Ceiling — uma homenagem aos estudantes mortos no terramoto de Sichuan, em 2008 — e a série de esculturas Circle of Animals, que recria 12 cabeças de animais do zodíaco chinês que em tempos adornaram uma fonte no jardim Yuanming Yuan, nos arredores de Pequim.
Estarão presentes ainda importantes trabalhos recentes de Ai Weiwei, como Law of the Journey (Prototype C), um barco insuflável de 16 metros de comprimento com figuras humanas que alude à crise dos refugiados — tema amplamente transposto para a obra artística de Ai Weiwei nos últimos anos —, que foi apresentado pela primeira vez em 2016. No decorrer da exposição, haverá ainda um ciclo de documentários sobre a vida e trabalho do artista, informa a Everything is New.
Numa ala as obras “fantásticas”, na outra as obras “políticas”
O título da exposição, Rapture, foi assim explicado pelo curador:
Rapture é uma ideia de encontro, de transcendência, entre o mundo carnal e o mundo espiritual. Liga os dois lados da dimensão da existência — por um lado o imaginário, mítico, religioso, espiritual e por outro o mundo das coisas reais.”
Segundo o curador Marcello Dantas, na primeira exposição de Ai Weiwei em Portugal o público poderá encontrar “duas dimensões da sua obra”. Numa ala da exposição estarão as questões relativas ao confronto com o mundo, com obras que traduzem as suas posições “sobre o ambiente, a questão [oposição] relativa à China, a defesa de direitos e liberdades de expressão”. Na outra ala será possível ter um vislumbre da “dimensão espiritual da sua obra” —essa é “a área da fantasia, do sonho”.
As duas vertentes da sua obra, a mais metafísica e a mais ligada à realidade, servirão quase como síntese do trabalho de Ai Weiwei. Isto porque por um lado “entendê-lo exclusivamente como ativista é muito redutor”, por outro “entendê-lo como artista que olha só para o mítico também não é entender a sua dimensão”.