“A primeira vez que ouvi o vinho a entrar no tonel, senti o mesmo espanto que os jovens que começam agora a trabalhar. E eu perguntava, como eles perguntam, ‘como é que se enche o casco pelo som?’. Agora, sou eu que respondo o que me responderam a mim: ‘não ouves que o som se torna mais grave?’ Há sempre alguém que se aflige: ‘isto vai entornar!’ Mas nós sabemos que não vai… ouvimos a tempo de parar”. João Araújo, profissional de armazém, descreve aquele que considera um dos momentos mais especiais da sua atividade: o de colocar o vinho a estagiar. “O tonel é de madeira, por isso não tem um nível. Conforme vai enchendo a zona vazia, o som com que bate é outro. Quando está cheio, fechamos a torneira. Ainda preservamos esta técnica mais antiga, mas é claro que também usamos as sondas que desligam as torneiras quando ficam cheias”.
Mais conhecido por “velhote”, João Araújo tem 53 anos, 31 dos quais passou na José Maria da Fonseca, a tratar do Periquita e não só. “Fiz contrato no dia 12 de setembro de 1989. Como muitos da minha idade, vim para cá depois da tropa, que era obrigatória na altura. O meu pai perguntou-me se queria experimentar fazer a vindima. Assim fiz, e fui ficando até hoje.”
Aprender e ensinar
Parte da atividade de João Araújo passa por ensinar os mais novos. “Gosto de ensinar o que sei. As pessoas têm a ideia de que, para fazer vinho, basta apanhar a uva, esborrachá-la e metê-la na garrafa. Mas é um processo muito complexo. Comecei por fazer as vindimas mas, hoje, sou responsável por tudo o que é a madeira para o envelhecimento dos vinhos.” O seu saber foi adquirido pela prática, mas também lhe vem no sangue. O bisavô foi encarregado de produção e o avô, técnico de frio – estava na empresa quando se começou a refrigerar o vinho. “O meu pai ficou conhecido como um dos melhores tanoeiros aqui da zona. Tinha umas mãos extraordinárias e levou oito anos a aprender o ofício. Sempre pensaram que eu, como seu filho, seguiria os mesmos passos. Mas a tanoaria é uma arte, não é algo que se escolha.”
Teresa Pereira, Assistente de Marketing e Vendas da JMF, recorda no seu testemunho publicado anteriormente, a figura do tanoeiro João Henrique Araújo que, “munido da sua lanterna e caixa de ferramentas, vigiava atentamente cada recanto da Adega, pronto a atacar qualquer fuga de vinho que se verificasse”. Pai e filho ainda trabalharam juntos 14 anos e falavam de tudo, dos problemas, dos desafios e da chegada das máquinas: “Elas vieram alterar as coisas, mas também tornaram o trabalho muito menos desgastante. A vindima que aprendemos a fazer era toda manual, hoje em dia é tudo mecanizado. Os miúdos mais novos nem calculam”, garante. Ainda assim, a diminuição na carga do trabalho, não fez cedências à qualidade: “o Periquita é um dos vinhos que segue o padrão de quando entrei para cá. Não foi atrás dos pedidos do mercado. Das castas com que se iniciou a sua produção, até hoje, não conheceu muita variação. Os apreciadores de vinho confiam no Periquita: ‘é pá, isto aqui é garantido, tem lá o Castelão, a Trincadeira, o Aragonês…’ É um vinho que cativa: provamos, gostamos e continuamos a beber ao longo dos anos”, diz. Orgulha-se do seu trabalho e do produto terminado: “quando tenho amigos ou pessoas conhecidas, brindo-as com o Periquita. E gosto de ouvir, quando entramos em qualquer lado e eu refiro onde trabalho, dizerem que temos bom vinho”.
Uma vida de histórias
Dos diferentes episódios caricatos que fazem parte da sua vida, João Araújo escolhe contar um que envolve as grandes barricas de vinho, como não podia deixar de ser. “Quando é preciso, entramos dentro dos tonéis por um postigo pequeno, com uma técnica específica, já que parecemos sempre enormes face à abertura. Um dia, precisei de entrar num, enquanto decorria uma visita. Uma turista observou a cena e duvidou que eu conseguisse fazê-lo, por isso apostou mil escudos em como não conseguia entrar no tonel. Mas é claro que entrei! E não é que me deram mesmo os mil escudos?!”
João Araújo lembra que esta é uma vida cheia de histórias, decorridas ao longo de três décadas de trabalho. Tempo suficiente para ver a evolução da empresa e para acompanhar as várias gerações da família que a dirige. “Com o senhor engenheiro Fernando Soares Franco, era uma relação mais distante, de grande respeito, afinal, era da idade do meu avô. Já com os filhos, o engenheiro Domingos e o Dr. António Soares Franco, é uma relação de igual respeito, mas mais aberta. E, com os netos, acaba por ser de maior proximidade: “afinal, andei com eles pela mão e vi-os crescer, até porque quase todos os rapazes da família vêm fazer a vindima pelo menos uma vez. É uma firma de família e é muito bom conhecermos o nosso patrão, se precisarmos de alguma coisa, sabemos com quem devemos falar”.
Um legado
João Araújo pertence às gerações mais antigas de colaboradores da empresa, porém nenhum dos dois filhos parece querer seguir-lhe as pisadas. Ainda assim, quer continuar a ensinar e deixar a sua marca. “Nunca imaginei que iria ficar aqui tanto tempo. Mas, não só tenho uma grande paixão pelo que faço como, por causa da camaradagem que encontrei, fui ficando”. O seu desejo é ser, de alguma forma, reconhecido pelo seu trabalho: “que se ouça, ‘foi o João Araújo que me ensinou isto’, e que se diga que eu fui uma boa pessoa. É só”.