Luís Noronha Nascimento arrasa vários processos e critica a atuação do Ministério Pública num longo artigo publicado na revista da associação 25 de Abril “O Referencial”. E justifica, mais uma vez, porque mandou destruir escutas de Sócrates. “Temo bem que o futuro nos traga uma surpresa desagradável: a manipulação da investigação criminal”, começa por escrever.

O extenso artigo publicado esta quinta-feira está carregado de comparações e nem a história do Pedro e do Lobo escapa às analogias do antigo presidente do Supremo Tribunal de Justiça, que também assume uma postura crítica em relação à comunicação social, nomeadamente no que toca às fugas de informação.

O título — “Investigação criminal: o vermelho e o negro” — já deixava antever o conteúdo do texto, em que o estado da justiça é escrutinado e não faltam críticas aos vários atores. Tudo começa com exemplos do lado de lá do Atlântico, com a operação Lava Jato, mas o foco principal é outro: “Temo bem que o futuro nos traga uma surpresa desagradável: a manipulação da investigação criminal, usada como arma dissimulada de arremesso para influenciar, condicionar ou infletir as tendências políticas da sociedade, do modo que melhor aprouver a quem a usa ou a quem dela se aproveita”, escreve na introdução Noronha Nascimento.

E, segundo o antigo presidente do Supremo, a primeira vez que a “problemática ganhou corpo” foi quando o STJ foi confrontado com a decisão de “validar (ou não) as tão faladas escutas telefónicas e as mensagens (sms) recolhidas no processo Face Oculta”. Não é a primeira vez que o juiz fala na destruição das escutas, que visavam o antigo primeiro-ministro José Sócrates.

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Colocando pressão nos meios de comunicação social, Noronha Nascimento questiona “a que título escutas sem interesse algum em termos criminais, incidindo sobre conversas totalmente irrelevantes, do foro íntimo, privado e pessoal dos intervenientes não foram destruídas à partida como a lei prevê?”. O antigo presidente do Supremo recorda que nenhum dos meios de comunicação divulgou o conteúdo das escutas o que, considera, possibilitou “vender subliminarmente a mensagem de que o presidente do STJ destruiu uma escuta para favorecer um primeiro-ministro”.

E defendendo que em momento algum as escutas tinham qualquer relação com a compra de um jornal e canal de televisão, Noronha Nascimento diz que “mesmo que tivessem” não existia “crime algum”. “Compra que — a ter sido pensada — nunca passou de sonho de uma noite de Verão porque nunca houve proposta formal de compra, nem parecer da entidade reguladora sobre a sua admissibilidade”, escreve.

Já sobre o processo dos Vistos Gold que, entre outros, investigou Antero Luís, juiz desembargador e atual secretário de Estado Adjunto e da Administração, o autor do artigo frisa que um “inquérito criminal contra um juiz tem de ser dirigido por procurador de escalão hierárquico superior ao do juiz”, algo que não aconteceu e, nota Noronha Nascimento, “o DCIAP continuou a investigação como se fosse competente para o fazer”, tendo, no final, “o relatório preliminar da PJ parido um rato”.

Noronha Nascimento diz que “se fez luz” na procuradora-instrutora que estava a conduzir a investigação quando perecebeu que “o suspeito era juiz-desembargador” e que, por isso, “o inquérito tinha que prosseguir a cargo dos procuradores-gerais-adjuntos do STJ”. Mas o trânsito do processo não correu como esperado: “A instrutora não enviou o relatório feito pelos peritos da PJ (nem, sequer, uma cópia dele), onde estava indiciada a inocência de um cidadão, reteve-o, sonegou-o à apreciação de quem era competente para a decisão de acusar ou arquivar”, sublinha.

A corrupção continuada no segredo de justiça

Uma vez mais apontando à comunicação social, Noronha Nascimento diz que “durante vários anos” se assistiu a uma “permanente indignidade”: “Com violações constantes do segredo de justiça em inquéritos criminais, com notícias relativas a investigações sensíveis, com notícias envolvendo figuras conhecidas (ou não), com transcrição de peças processuais em segredo de justiça mas vazadas em jornais e canais televisivos”.

Aponta que tudo isso se passou no mesmo grupo económico e questiona, em tom crítico: “A violação do segredo de justiça é um crime ‘barato’, de pena leve que — por isso — não admite escutas; a corrupção é um crime grave que as admite”. Mais além, inquire: “Será que se não quis escutar porque se não quis saber quem estava na linha telefónica?”

E na base dessa questão Noronha Nascimento supõe que “se há quem habitualmente passe informações confidenciais e privilegiadas, os suspeitos prováveis serão — quase pela certa — funcionários judiciais ou investigadores ou advogados ou procuradores do MP ou juízes; se há quem, habitualmente, as recebe, os recetores prováveis serão jornalistas ou seus assessores”. Num tom irónico, admitindo a facilidade de identificar “emissores e recetores concretos”, diz que o país “se viu privado neste caso de uma autêntica prenda de Natal”.

“Será que – verdadeiramente – nunca se quis saber nada porque dava jeito, se quis continuar num jogo de luzes e sombras que se prolongava indefinidamente nos jornais e televisões, se quis dar guarida às violações do segredo de justiça, possibilitando as opiniões de comentaristas destinadas a formatar a opinião pública o melhor possível em função de quem investigava, mesmo que a investigação não levasse a lado nenhum?”, escreve.

Ainda sobre a criminalização do enriquecimento ilícito, Noronha Nascimento recorda as duas tentativas, que o Tribunal Constitucional terminou, para que fosse permitida a inversão do ónus da prova. O objetivo era que fosse o arguido a fazer prova que não tinha cometido qualquer crime antes da investigação e prova do Ministério Público. Mas o magistrado diz que “o que manifestamente se quis foi libertar o Ministério Público de uma dificuldade de raiz”. “Se o MP não consegue obter prova para a condenação do arguido, transfere-se essa dificuldade para o arguido a quem é indexado o encargo de provar o contrário daquilo que o MP não consegue provar”, refere.

“Não tenhamos ilusões: este modo de investigar – e, por detrás dele, o modo social de pensar que o vai legitimando – pode estar em marcha e ser um perigo latente, nomeadamente, em sociedades (como as nossas) que integram uma civilização em queda lenta, mas cujo declínio sentimos aos solavancos de tempos a tempos”, aponta Noronha Nascimento, defendendo que é necessária “uma maior jurisdicionalização da investigação criminal” conforme a Constituição Portuguesa pressupõe. “Defendemos a existência de um leque mais alargado de incidentes jurisdicionais enxertados no inquérito, a pedido do arguido, do suspeito ou, até, de um terceiro (em casos específicos) onde — com contraditório — o juiz sindique a violação, ou não, de direitos fundamentais”.

Não se procedendo como defende o antigo presidente do STJ, considera este que podemos ter “na prática, uma investigação criminal verdadeiramente dirigida segundo o princípio da oportunidade que o Poder Político sempre rejeitou: o MP investiga ou não segundo as incriminações que faz ou não, recolhe prova desta ou daquela forma segundo critérios oportunísticos, numa espiral meia-discricionária, meia-arbitrária que dificilmente terá controlo”. “O MP deixa de ser, apenas, o agente investigatório do crime e passa a ser, também, um parceiro privilegiado do jogo político”, refere, alertando para a possibilidade de, “no fim da linha”, megaprocessos ou grandes processos se transformarem em coisas insignificantes.

“Os que foram ilibados — quando tiveram voz e direito de defesa — que há para lhes dar? Uma indemnização rareada segundo os critérios que temos e que dificilmente serão alterados? Um cartão de condolências pedindo desculpas pelo que aconteceu? Ou o gesto prosaico de encolher os ombros porque a vida é um risco, e o risco é o placebo que Deus levará na conta final?”, termina Noronha Nascimento.