Cada guerra tem o seu herói – sobretudo, no jornalismo. Se mais tarde cai ou não em desgraça ou, pelo menos, no delírio egocêntrico, é questão que, por ora, não temos como saber nem interessa. Nas trincheiras das eleições norte-americanas de 2020, incendiadas por uma das hostes até assumirem contornos verdadeiramente pré-bélicos, uma figura emergiu como um colosso entre a torrente noticiosa: John King.
Os jornalistas que ascendem ao estatuto de estrela costumam ser os pivôs, os enviados especiais ou, quanto muito, os comentadores. Não é, porém, em nenhuma dessas funções que King salta, agora, de um lado das notícias para o outro. É na de co-host, uma espécie de homem do tempo, que tem um enorme mapa virtual interativo onde, em vez de nuvens, sóis, chuva, temperaturas máximas ou mínimas, aparecem os condados e estados norte-americanos, bem como os números do evoluir da votação – o “Magic Wall”, como diz Wolf Blitzer de cada vez que lhe passa a bola. Debita números e informação pura e dura – e, no entanto, é quem magneticamente nos prende ao ecrã nestes longos dias de suspense. Porquê?
John King não é, propriamente, um principiante. É um veterano de 59 anos que conduz o programa de debate “Inside Politics” e que é o correspondente-chefe da CNN em Washington D.C. desde 2005. Natural de Boston e formado pela Universidade de Rhode Island, este descendente de irlandeses que, pelo roteiro, já deve ter conhecido muito português e lusodescendente, veio em 1977 da Associated Press, onde foi premiado pelo trabalho na Guerra do Golfo, para o canal hoje propriedade da Warner. Já apresentou “State of the Union” e até teve show em nome próprio: o “John King, USA”, cancelado em 2012. É presença habitual no “Situation Room” e no “Anderson Cooper 360”. De resto, também tem olhos claros, cabelo impecavelmente branco e aquele ar distinto de quem pode ser recrutado, a qualquer momento, para comandar a Starship Enterprise.
Quem é John King, o jornalista que se tornou o “MVP” das eleições norte-americanas
Divorciado de outra jornalista da CNN, Dana Bash, pela qual se converteu ao judaísmo, o agora “analista” de dados eleitorais é, na verdade, um dos maiores especialistas da CNN em assuntos da Presidência. Foi o correspondente na Casa Branca durante os últimos anos da administração Clinton e boa parte das de Bush. Mas, para muitos americanos, King é, fundamentalmente, o rosto e a voz que, a 2 de Maio de 2011, deu a notícia de que Osama bin Laden estava morto.
Agora, nestas eleições americanas, que parecem, mais do que nunca, fazer-nos reclamar o direito de voto enquanto cidadãos de um mundo profundamente impactado pelo resultado delas, John King é o esteio transformado em hashtag já seguido por mais de dois milhões e meio de utilizadores no improvável Tik Tok.
E, no entanto, a verdade é que ele já faz este mesmo trabalho, na Magic Wall, em todas as eleições americanas desde 2008 – porque é que só agora é que reparámos nele? Isso, caro leitor, tem uma razão, e é triste: porque Trump deixou o valor da verdade tão pela hora da morte que nos agarramos ao homem que traz a crueza factual dos números como a um bardo da Antiguidade.
Desde 3 de Novembro que ligamos a televisão e lá está John King. Sempre impecável, só muda o fato e a gravata. Suspeitamos que não dorme. Alguém lhe troca a bateria quando o plano está mais fechado ou a emissão vai para um bloco publicitário. O próprio diz que só dormiu duas horas e meia na noite das eleições e quatro na seguinte. Estado a estado, condado a condado, atualização a atualização, King manipula o quadro táctil para nos mostrar, do macro ao micro, o evoluir da contagem. Mas faz mais do que isso: repetida e pedagogicamente, explica-nos o que está a acontecer.
Porque é que os resultados estão a demorar tanto a sair. Porque é que os votos por correio demoram mais a contar do que os presenciais. De que forma é feita a sua verificação. A questão de o receio da Covid-19 ter levado, este ano, muito mais eleitores a preferir votar, em segurança e antecipadamente, por via postal, e o porquê de estes votos se estarem a revelar, tão desproporcionalmente, mais favoráveis a Biden do que a Trump. Porque os democratas recomendaram vivamente o voto por correio, ao passo que os republicanos, ocupados em menorizar a gravidade da pandemia, o desmereceram, encaminhando os simpatizantes para o voto tradicional, em urna. King explica-nos a diferença de métodos de contagem de estado para estado, os processos, as garantias de segurança – e recorda-nos, sistematicamente, que isto que estamos a ver não é uma fraude eleitoral, como diz, sem qualquer prova ou consistência, o Presidente Trump; são números. São factos. É matemática simples. É essa outra coisa extraordinária chamada democracia.
Ou seja, nesta realidade alternativa e completamente inaudita a que viemos parar, em que um só homem conseguiu transformar a verdade numa questão de opinião, que desvalorizou os factos e a ciência até ao nível da conversa de café, John King vestiu a pele do herói que consegue explicar, as vezes que forem necessárias, sem sinal de irritação ou cansaço, o óbvio e, assim, defender o que resta da dignidade das instituições: um país, uma cultura, um regime político, um povo, que, alegadamente, estaria integralmente a conspirar contra Trump. Pois, a notícia de última hora é esta: à conspiração de um povo chama-se, justamente, democracia. Chama-se liberdade.
King tem o fator carisma do seu lado e, em última instância, há sempre uma dimensão inexplicável no porquê de prendermos a nossa atenção a um rosto e não aos milhares de outros que concorrem pelo nosso tempo no vórtice mediático do excesso de informação. Todavia, há qualquer coisa de mais inteligível no porquê do sucesso que alcança este ano. Com os seus números, factos, matemática e serenidade lógica, ele aparece-nos como porta-estandarte da razão. Uma espécie de último moicano do jornalismo como sempre o conhecemos e não queríamos nem deveríamos ter deixado de conhecer: factual, imparcial, sem opiniões, sem distorções, sem sensacionalismos, sem propaganda.
Em poucas palavras, num tempo cheio de informação que não é de fiar, King inspira o incomparável valor da confiança – pode estar certo ou não, vir a cair em desgraça, transformar-se num egomaníaco delirante; interessa que, neste momento, isto é o que ele emana para milhões de espectadores em todo o globo. Num mundo onde os idiotas nunca estiveram tão perigosamente perto de vencer, John King dá-nos a esperança de que a normalidade ainda possa dar a volta ao jogo.
A má notícia? As imitações baratas, egocêntricas e muito demagógicas devem estar quase a chegar aos ecrãs portugueses.
Alexandre Borges é escritor e argumentista