Os portugueses têm esta mania: adoram produtos premiados. Mania ainda maior é a de se referirem aos portugueses como se deles não fizessem parte, tal como acabei de fazer. Por isso mais vale confessá-lo na primeira pessoa: eu também adoro coisas premiadas. Seja aquele filme com a Lúcia Moniz ou o melhor pastel de feijão da zona oeste. Assim, quando ouvi dizer que uma tal de “Schitt’s Creek” tinha vencido uma catrefada de Emmys (melhor série de comédia, melhor guião, melhor realização e melhor elenco), quis ver o que se passava. Se nos lembrarmos de que, nas edições anteriores, os Emmys de melhor série de comédia foram entregues a “Fleabag”, “The Marvelous Mrs. Maisel”, “Veep” e “Modern Family”, a fasquia estava elevada.
E talvez tenha sido esse o primeiro problema: a expectativa. Eu não sabia nada sobre este “Schitt’s Creek”, tinha lido apenas uma sinopse estilo Wikipedia, que contava que os Rose são uma família milionária, dona de uma cadeia de videoclubes, que de repente fica sem nada por causa da fraude de um dos sócios da empresa (terá sido isto que aconteceu à Blockbuster? fica no ar). A premissa não parece má, é o clássico “ricos tornam-se pobres de repente e têm de se adaptar”, no fundo, um “Nós os Ricos” ao contrário, mas que ao fim de dez minutos nos deixa com saudades do Fernando Mendes e do seu mordomo Carlos Areia.
Se estou a exagerar? Estou, claro. É a maldita expectativa (um bom título para musical do Filipe La Feria). De uma série que arrebata os Emmys esperava um início arrebatador. Ainda só vi os dois primeiros episódios, pelo que este julgamento é claramente precoce. A vida já me ensinou que é preciso dar uma segunda (e terceira ou quarta) chance. Veja-se o que aconteceu com o Éder… se Fernando Santos não lhe tem dado tantas oportunidades não chegaria a tornar-se uma figura de proa da História Portuguesa, merecedora de lugar no Panteão (exagero, outra vez? Sim! Muito!).
[o trailer original da primeira temporada de “Schitt’s Creek”:]
É por isso que eu, enquanto selecionadora das séries que passam na televisão cá de casa, não desistirei, para já, de “Schitt’s Creek” (que se estreia em Portugal esta quinta-feira, dia 19, no TVCine Emotion, às 22h10). Voltarei a convocá-la numa qualquer tarde de domingo. Acho que tem potencial, embora na 1ª temporada se aproxime mais de um Fábio Paim da comédia do que de um Ronaldo. Digamos que não é ainda uma série fora de série. Mas parece que se tornará, já que os Emmys que arrecadou se referem à sexta temporada. Há que dar tempo ao tempo, o que é difícil numa altura em que todos os dias aparecem séries novas, tentando-nos a abandonar a que estamos a ver, e a traí-la de todas as formas e feitios, em todos os ecrãs da casa. A verdade é que tentei por três vezes ver o primeiro episódio de “Breaking Bad”, e das três vezes desisti. À quarta vi até ao fim, e nunca mais parei (quer dizer, parei quando a série acabou). Quem sabe se não estamos perante um fenómeno semelhante. Aqui, ao contrário do que sucedia na história de Walter White, o problema não é o ritmo lento e pastoso do arranque. Pelo contrário, é uma certa gritaria que faz lembrar más comédias americanas, embora se trate de uma série canadiana… Boa ou má? Veremos.
A série foi escrita por Eugene e Dan Levy, pai e filho, que são também protagonistas na série, desempenhado o difícil papel de… pai e filho. “Schitt’s Creek” é, portanto, uma empresa familiar. Eugene Levy será para muitos, e para sempre, “o pai do American Pie”. É impossível olhar para ele sem nos lembrarmos disso, digamos que o papel de pai está-lhe tão colado à pele com o de médico de família está a Fernando Luís. Até estranho que este último não tenha sido ainda convocado para ajudar na linha da frente, no combate à pandemia. Na série Eugene e Dan são Johnny e David Rose. Mal por mal preferia quando era pai do Jim (Jason Biggs), e tentava dar-lhe aulas (peculiares) de educação sexual. É que esta parceria com o filho biológico, até ver, funciona pior. Talvez esta série seja para Eugene Levy o que “How I Met Your Mother” foi para Alyson Hannigan, que só então deixou de ser a bizarra Michelle de “American Pie” para passar a ser Lily. Provavelmente Eugene passará a ser, daqui para a frente, o Johnny de “Schitt’s Creek”.
Quanto à matriarca dos Rose, também a conhecemos de outros carnavais: Catherine O’Hara é, entre muitas outras coisas, a mãe do “Sozinho em Casa” (uma mãe irresponsável, portanto). Aqui é Moira Rose, uma ex-atriz de novelas, que nunca sai do registo melodramático e parece ser, nesta etapa inicial, a personagem mais bem conseguida. Pelo menos aquela que melhor se apresenta nos primeiros quarenta minutos da trama. Dos filhos, David e Alexis Rose, sabemos, nesta fase, que estão desejosos de conseguir fugir da terreola onde forma parar. A história começa pelo fim. O fim do império da família Rose. São despejados da sua mansão e mudam-se para Schitt’s Creek, uma pequena cidade que o pai comprara ao filho só por piada (os autores contam que se inspiraram na história de Kim Basinger, atriz que a certa altura comprou uma cidade na Georgia). Seria o equivalente um magnata português adquirir a Picha ou a Venda da Gaita, só por motivos de galhofa, e depois ter mesmo de ir viver para uma dessas freguesias de Pedrógão Grande, provavelmente numa residencial de beira de estrada, daquelas que também servem refeições.
O imaginário americano (ou canadiano, no caso) é um pouco diferente, por isso os Rose mudam-se para um motel, onde estão peixes fora de água. Johnny Rose pede ovos florentine e parfait de iogurte no room service, e a rececionista tem de o alertar que não têm nem room service, nem pequeno-almoço. Alexis Rose vai toda produzida a uma festa onde todos vestem pouco mais do que fato-de-treino, e David Rose, num jantar que junta os pais e o mayor de Schitt’s Creek, fala de arte contemporânea, enquanto o autarca enfia a mão dentro da panela do fondue. É destes contrastes que vive a história de “Schitt’s Creek”. Acredito que, nos episódios seguintes, haja mais, além desta dicotomia que é cómica mas que se esgota rapidamente. Pelo que fui lendo, numa espécie de auto-spoiler, a família Rose vai-se enturmando progressivamente na vida da cidade, e a série ganha novos contornos. Só isso pode explicar a retumbante vitória nos Emmys (“Schitt’s Creek” foi a primeira série a vencer todas as categorias de comédia). Os primeiros episódios dariam apenas para se candidatarem aos prémios da TV Mais.
A verdade é que o sucesso demorou a chegar. A série foi criada em 2015, levou uma série de tampas de várias televisões americanas, acabou por estrear na CBC, no Canadá e na Pop TV nos Estados Unidos, explodindo apenas dois anos mais tarde quando chegou à Netflix. Esta avalanche de prémios parece ser o corolário para o trabalho dos últimos cinco anos. Um final feliz para a série, que tem nesta sexta temporada a derradeira. Eugene Levy disse, em entrevista ao New York Times, que este é o momento certo para acabar, e que resistiu à tentação de prolongar a história. Subiu, assim, na minha consideração, elevando-se mais ainda quando contou que, na terceira temporada, abandonou a “writer’s room” da série, dando espaço ao seu filho, Dan. Já devia ter aprendido, pela experiência em “American Pie”, que às vezes é melhor deixar os filhos sozinhos no quarto.
Talvez a terceira temporada seja, então, o ponto de viragem na série, que a catapulta para os altos voos em que a vemos agora. Espero que este texto envelheça muito mal, e que quando acabarmos de ver as seis temporadas seja absolutamente ridículo eu ter falado, um dia, de “Schitt’s Creek” como se de um Dawson’s Creek se tratasse.
Joana Marques é humorista, faz rádio muito cedo e deita-se demasiado tarde