Título: O Infinito num Junco
Autora: Irene Vallejo
Editora: Bertrand
Páginas: 456
Preço: 19,90€

A capa de “Infinito num Junco”, de Irene Vallejo (Bertrand)

Houve um tempo em que o prazer da leitura coexistia com a sua dificuldade. Em que os papiros eram um bem raro e um monopólio do Nilo, capaz de motivar embargos e guerras comercias entre Pergamo e Alexandria, em que as tabuinhas assírias se perdiam com uma facilidade que o seu fabrico não descobrira ainda, e em que copistas capazes de dominar a escrita hieroglífica ou os alfabetos simbólicos rareavam; a ideia de um prazer da leitura como um prazer tranquilo e sereno, como ex-libris da luta pacífica contra o tédio, é fundamentalmente uma construção moderna.

A verdade é que durante séculos a leitura implicou um esforço extraordinário. Motivou peregrinações às terras mais longínquas em busca de papiros e pergaminhos desconhecidos, libertou reis e faraós de fortunas salomónicas e obrigou estados inteiros a sacrifícios de recursos difíceis de conceber.

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A ideia de que várias civilizações investiram o seu sangue e os seus destinos num sistema tantas vezes complicado de registo, de que haveria quem pagasse o seu peso em ouro por ver registada uma história ou pela aprendizagem da técnica da leitura, que se curtiram peles e sacrificaram animais, se obrigaram as margens dos rios a esforços impensáveis, pela possibilidade de rever uma sequência de palavras é uma das mais apaixonantes ideias sobre o Homem. Todos percebemos a importância dos registos, das contabilidades e de uma escrita rudimentar, capaz de ocupar tabuinhas de argila simples e pouco desenvolvidas; mas que as Histórias e o conhecimento abstrato impilam o Homem a empreitadas épicas é tão comovente como a mais bela História que um livro nos traga.

Ora, é deste tempo, do sinuoso destino do livro e da leitura pelos caminhos da Antiguidade, que o livro de Irene Vallejo trata. Um prazer da leitura anti-proustiano, não da leitura serena, das tardes de sol e das páginas viradas em jardins, mas do sonho de Alexandre em escrever na Terra o seu próprio épico, da dinastia dos Ptolomeus de possuírem todos os livros do mundo, dos sonhos de reunião de sábios e da junção de todo o conhecimento e da forma obsessiva e perigosa como estas ambições se foram concretizando.

As teses do livro são discretas e não muito desenvolvidas. A ideia de que a leitura solitária, uma invenção moderna, nos torna mais livres e mais íntimos, ou de que a cultura oral parece estar a regressar depois de séculos de reinado da letra; nem todas as teses são consistentes e muitas não são desenvolvidas em mais do que uma ou duas linhas, porque de facto não é isso que importa no livro: as várias histórias, as curiosidades antigas ou modernas sobre a biblioteca de Florença começada por Niccolò Niccoli, ou das obsessões joycianas, isso é que torna o livro agradável e belo.

Esta não é propriamente uma História típica; não se nota a organização, embora também não lhe possamos chamar caótica; tem a estrutura de uma conversa rociada de histórias, aquela forma que encontramos em George Steiner ou em Magris, se um e outro concentrassem ligeiramente os assuntos, levassem mais longe as suas obsessões e baixassem a voz a um plano capaz de encontrar a modernidade mais prosaica. Porque este é também um dos encantos do livro: embora a Antiguidade seja indiscutivelmente o tema e Platão e Aristóteles habitem os lugares mais altos do livro, há um tom tão despretensioso e tão íntimo, uma relação tão óbvia e tão nítida da autora com aquilo que estuda, que todo o estilo se torna desarmante.

É habitual que de um livro a que chamamos inclassificável se assista a uma complicada sequência de invenções estilísticas e a grandes arranjos que tornam o tema oblíquo e as reflexões obscuras; o que é interessante neste livro, porém, é que ele se torna inclassificável precisamente porque é difícil encontrar um registo que nos pareça tão próprio e tão simples. Aquilo que se vê é uma viagem de uma rapariga, de uma estudiosa a quem a curiosidade torna todas as suas histórias íntimas e despidas da pátina solene da erudição, que olha para a Antiguidade com uma honestidade que lhe dá uma frescura pouco vista. Sem ímpetos revanchistas contra as violências de tempos mais duros, mas também sem perder de vista as preocupações de uma estudante do século XX, este livro dá um testemunho de amor pela leitura, amor esse filtrado pelas leituras de outros, de outro tempo e quase de outros mundos, que é das mais bonitas narrações sobre o assunto.

Que um livro sobre a leitura nos mostre o prazer de ler é quase um pleonasmo; no entanto, é um pleonasmo difícil de concretizar e este Infinito num Junco, de facto, consegue-o.